O satanismo geralmente remete à imagem de figuras vestidas de negro que sacrificam animais em rituais secretos e adoram as trevas.
É verdade que de vez em quando eles resolvem ser mais criativos e atiram uma boneca de uma passarela para provocar um acidente ou pintam uma suástica numa igreja católica para chamar um pouco de atenção.
O mais provável, porém, é que os envolvidos nessas actividades sejam pessoas comuns, que tomam café de manhã na padaria, trabalham num shopping e pensam que Marilyn Mason é uma pessoa de verdade, não um personagem.
Entidades realmente assustadoras não têm o costume de anunciar sua presença, e é em boa parte por isso que os cultos satânicos escapam aos olhos do público e encontram espaço em todos os sectores da sociedade.
Durante centenas de anos, essas organizações secretas valeram-se do mais simples dos métodos de recrutamento e conversão: o medo.
Na verdade, uma das maiores ameaças do satanismo está no efeito que sua violência ritualística produz sobre suas vítimas.
Claudia Fliss é psicoterapeuta e a maior especialista da Alemanha em traumas gerados pela violência ritualística. Ela ajuda a reabilitar antigos membros de cultos satânicos há duas décadas.
Claudia já ouviu centenas de relatos de ex-satanistas, e os exemplos que ela deu fazem as histórias mais comuns relacionadas ao culto do demónio parecerem brincadeira de criança.
As vítimas reportam com frequência casos de canibalismo, assassinato e estupro de crianças. E o mais perturbador foi a serenidade e a familiaridade com que Claudia mencionou esses acontecimentos - ela ouve esse tipo de relato o tempo todo.
Quando achei que já tinha ouvido de tudo, Claudia me informou que a maioria de seus pacientes nasceu no seio de ordens satanistas e foi “programada” desde cedo para obedecer aos pais e aos membros mais velhos da seita.
Um dos primeiros estágios dessa programação envolve fechar a criança numa caixa e acionar um “gatilho” sonoro, como um determinado toque de celular ou apito.
O objectivo é fazer com que a criança associe tal barulho a uma sensação de pavor, um método de controle que se mostra bastante eficaz quando a pequena vítima é solta, o que aliás só acontece quando ela está a ponto de morrer asfixiada.
Depois que a caixa é aberta, a criança é imediatamente instruída a fazer algo horrível, como matar um animal.
Em muitos casos, os pequenos se recusam a fazer isso, e acabam sendo forçados a voltar para a caixa, onde vão ficar por muito mais tempo antes de serem libertados e receberem a mesma instrução novamente. Se a criança resistir, volta para a caixa até que finalmente acabe por ceder.
O processo é tão traumático que a mente da vítima costuma criar uma perssoa completamente nova e distinta (muitas vezes uma criança mais velha ou um adulto) para conseguir lidar melhor com o trauma.
Quando o indivíduo é finalmente libertado, identifica a pessoa que abriu a caixa como seu salvador e, como consequência, passa a se dedicar com lealdade ao culto.
Se um determinado membro da seita quiser que a vítima obedeça a seu comando, tudo o que precisa fazer é acionar o gatilho sonoro, isso faz com que a pessoa reviva a experiência traumática a que foi submetida e volte a experimentar o estado mental em que se encontrava assim que foi libertada da caixa.
As vítimas de abuso ritualístico satanista são em grande parte mulheres, e muitas vezes acabam desenvolvendo algum grau de transtorno dissociativo de identidade.
É difícil afirmar com precisão, mas o número de identidades assumidas por uma única pessoa pode passar de 100, e as vítimas geralmente referem-se a si mesmas na primeira pessoa do plural.
Depois da nossa primeira entrevista, Claudia ligou-me e convidou-me para conhecer duas vítimas e saber um pouco mais sobre as circunstâncias a que foram submetidas.
Ela também me advertiu que isso implicaria certo risco, porque os integrantes da seita ainda mantinham contacto com essas pessoas.
Três dias depois, nos encontramos num apartamento em Berlim. Claudia me apresentou duas miúdas que não deviam ter mais de 25 anos de idade.
Pareciam estar apreensivas e acuadas, e fumavam sem parar enquanto bebiam uma xícara de café atrás da outra. Fomos até um dos quartos e conversamos durante uma hora sobre suas experiências com a seita.
Quando as minhas perguntas sobre cultos satánicos, violência ritualística e gatilhos sonoros se tornavam específicas demais, a conversa empacava.
Assim que elas saíram do quarto, Claudia me perguntou se eu sabia com quem eu tinha conversado. Era uma pergunta bem estranha, e me fez hesitar, mas ela logo explicou que havia reconhecido pelo menos dez identidades diferentes entre as duas miúdas durante a conversa.
Depois de vários meses de tratamento com as duas, Claudia consegue identificar com facilidade as nuances das diferentes perssoas: a jovem inteligentíssima de 25 anos de idade, a garota mal-humorada de 18, a mulher conservadora e desconfiada de 45.
Só me dei conta da gravidade da situação quando fui com Claudia até a cozinha para uma conversa em particular.
Passei pelas miúdas, que estavam no chão, literalmente dizendo “gugu dadá”. As perssoas infantis dentro delas estavam cansadas das conversas de adulto e queriam brincar com lápis de cera.
Depois desse primeiro encontro, estive com elas mais sete vezes. Durante uma visita, pude conhecer outras “pequeninas” - os bebés e criancinhas que elas tinham dentro delas.
Fomos até um parque de Berlim depois de anoitecer, para evitar os olhares dos frequentadores habituais do local.
O clima de apreensão era visível, mas, quando chegamos perto do playground, tudo mudou. As duas começaram a falar como crianças, a chupar o dedo e a discutir em qual balanço cada uma sentaria. Ao longo dos 45 minutos seguintes, conheci oito “crianças” diferentes.
Elas subiram em bancos, desceram nos escorregas, jogaram à bola, brincaram nos balanços e atiraram areia umas ás outras.
Quando estávamos sentados na areia, ouvimos um apito. Uma das miúdas afundou a cabeça entre as mãos e começou a chorar.
“Eu quero a minha mãe”, ela disse. “Eu preciso da minha mãe.” Foi aí que a coisa começou a ficar sinistra.
A “ minha mãe”, é claro, era um membro da seita da qual ela estava a lutar para escapar. Claudia explicou mais tarde que o apito havia acionado determinada pessoa numa das miúdas.
“Sempre fomos várias [pessoas]”, explicou uma delas com uma voz que aparentemente pertencia a uma criança diferente daquela com quem eu estava a conversar poucos momentos antes.
Sua amiga estava a soluçar abraçada nos próprios joelhos. “Apesar de não concordarmos em tudo, somos a única companhia que temos.”
Perguntei à Claudia o que aquilo queria dizer. “Um dos objectivos da terapia é fazer com que certas pessoas actuem como porta-voz das demais”, explicou ela.
“Assim elas criam uma certa confiança e se encarregam das interações do dia-a-dia. Quando uma nova identidade toma contacto com a vida quotidiana, cabe a essas pessoas mais estáveis acalmá-las e explicar o que está acontecendo.”
Esse processo, que elas chamam de “troca”, levou apenas alguns minutos. Logo a miúda acalmou-se e foi substituída por outra identidade.
Se elas não fossem capazes de impor a si mesmas uma certa dose de autocontrole, já estariam de volta ao culto, sofrendo as consequências.
O facto de as garotas terem se aberto comigo deu-me esperanças de que mais vítimas possam se abrir, e em número suficiente para chamar a atenção do público para esse problema.
“Não podemos viver a vida reclamando que ninguém nos ajuda sem nós mesmas estarmos dispostas a fazer alguma coisa”, disse uma delas.
Mais do que a tortura, a lavagem cerebral, a infiltração em órgãos do governo e as ameaças, o factor que mais contribui para a prática desses cultos satánicos é a nossa relutância em acreditar em sua existência de forma realística.
A polícia alemã não tem um departamento específico para investigar crimes relacionados ao satanismo ou à violência ritualística.
Quando esses crimes ocorrem, acabam sendo arquivados em diferentes categorias e logo são esquecidos.
Muitas vezes, quando as vítimas tomam coragem e abandonam a seita, o público em geral desconfia de seus relatos.
Uma das miúdas disse-me: “As pessoas não querem acreditar em nós porque, caso acreditem, vão ter que fazer alguma coisa a respeito. Acho isso muita covardia”.
Em seguida ela me contou sobre a tatuagem que queria fazer para cobrir o pentagrama que tem nas costas. Ela disse que estava pensando em fazer um golfinho.
fonte: Vice Magazine
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