terça-feira, 24 de maio de 2011

O agricultor que queria ser lobisomem


Ele passa a acordar a meio da noite, com a irresistível tentação de uivar para a lua; afirma sentir o espírito dos lobos e crê que tem um dom – essa é uma situação típica de delírio licantrópico.

O camponês M. tem 38 anos. Mora numa cidade do interior da Itália com a mãe, de 68 anos, e o pai, de 72, que também trabalham na pequena propriedade rural da família.

Ele saiu raras vezes de sua cidade natal e seus relacionamentos com mulheres foram poucos e breves – nenhum deles durou mais de dois anos. Actualmente namora uma moça que vive nas proximidades, sete anos mais jovem, mas ainda não planeiam casar-se ou morar juntos.

Costuma levantar-se às 5h e passa a maior parte do dia trabalhando na lavoura com o pai; passeia com a namorada algumas vezes durante a semana.

Apesar da vida aparentemente tranquila, M. tem uma característica muito peculiar: tem certeza de que, em determinadas noites, se transforma em algo parecido com um lobo.

O rapaz confessa que sempre foi apaixonado por histórias de fantasmas, vampiros e lobisomens. Durante a infância, ouviu uma série de casos, contados pelos avós paternos, já falecidos, sobre espíritos de animais que capturavam crianças.

Os pais de M., inclusive, acreditavam que esses contos fantasiosos tinham um fundo de verdade.

Sua mãe, além de ser muito supersticiosa e de acreditar na eficiência de pequenos rituais, como deixar uma moeda debaixo da cama para atrair dinheiro, crê que a licantropia também pode ser um privilégio divino.


Segundo a psiquiatria, M. sofre de uma espécie de delírio em que a pessoa acredita ter sido transformada em lobo ou outro animal selvagem, imitando seu comportamento.

O pai demonstra pouco interesse pelo assunto e acredita que se o filho tem uma doença a única opção é aceitá-la, como tudo o que é “enviado pelo Senhor”.

Quando M. conta a sua experiência (e seus sintomas), a família apresenta reações curiosas: o pai mostra-se passivo, como uma pessoa que já ouviu a mesma história muitas vezes; a mãe, ao contrário, fica feliz e quase orgulhosa, como se ouvisse, realmente, a revelação de um dom.

A MAGIA DO SINTOMA

Na realidade, M. sente que tem uma forte ligação com os lobos que outrora povoavam a região onde vive. Ele acredita que os animais visitam sua casa, o que considera, bem como sua mãe, um sinal de bom auspício e proteção.

Conta que passa várias noites observando a lua cheia e resiste, com muito sacrifício, à grande tentação de uivar em resposta a um “estranho chamado”.

Já a mãe afirma ter ouvido uivos ocasionais do filho, mas ele não confirma. Entretanto, está convencido de que acorda algumas vezes durante a noite e sente o próprio corpo “ligeiramente deformado”.

Não fornece mais explicações sobre esta sensação, mas dá a entender que a suposta transformação física ocorre por causa do contacto com os espíritos dos animais.

A única coisa que parece perturbá-lo um pouco é o receio de perder o controle dessas intromissões e não conseguir voltar à “forma humana”.


O que constatamos é uma manifestação anómala de delírio licantrópico, vivido de maneira singular, tanto pelo paciente como por seus familiares; uma patologia completamente integrada à vida quotidiana, vivida, sustentada e reforçada por um contexto cultural repleto de crenças em fenómenos paranormais e em magia.

Um círculo vicioso no qual doença e cultura se alimentam e se reforçam, a tal ponto que realidade e psicopatologia se tornam relativas e o mal-estar psíquico assume características subjetivas.

Para ter uma visão mais ampla do caso de M., seria interessante compreender a psicopatologia que o acomete.

Trata-se, em geral, de uma forma de alteração do conteúdo do pensamento, mas não da sua forma. Por isso a pessoa parece lúcida e coerente e não apresenta dificuldades cognitivas.

As alucinações podem se revelar por meio de diferentes temáticas: delírio de poder (a pessoa se identifica com um personagem poderoso da história, como Adolf Hitler, o rei Átila ou Napoleão Bonaparte); de ciúme (o paciente tem a convicção de que é traído pelo parceiro); paranoide (a pessoa acredita ser objecto de perseguição ou da ameaça de alguém); de erotomania (o indivíduo tem certeza de que um personagem distante, na maioria das vezes famoso, envia mensagens cifradas de amor pelo rádio e pela televisão).

Outros temas delirantes podem surgir associados a síndromes bastante raras, como a de Cotard, que consiste na negação (“não tenho mais uma alma, não tenho mais corpo”), e a de Capgras, conhecida também como “síndrome do sósia”, em que o paciente tem a convicção de que parceiros, amigos, parentes e outras pessoas significativas de sua vida foram substituídos por seres fisicamente idênticos.

O delírio licantrópico caracteriza-se pelo facto de a pessoa acreditar que o próprio corpo, ou parte dele, esteja a transformar e assumindo a forma de um animal, ou que a alma tenha sido possuída pelo espírito de um bicho.

O lobo é uma figura constante nesse tipo de perturbação – essa preferência tem uma provável (e muito remota) origem antropológica.

PATOLOGIA E CULTURA

As lendas sobre licantropos (do grego lykos, que significa lobo, e anthropos, homem) ou lobisomens (do latim lupus hominarius), estão presentes em muitas culturas.

Nesse caso, superstições e delírio andam lado a lado, o que dificulta o diagnóstico. Além disso, acredita-se que a popularidade mitológica do lobisomem tenha influenciado a expressão clínica desse tipo de delírio. E é sobre essas bases antropológicas que as alucinações podem se instalar, como ocorreu com M.


Em seu caso, não há nenhum pedido de ajuda para alterar sua condição. O paciente ou sua família não veem a situação como um problema, mas como um dom que deve ser protegido de curiosos e de estudiosos que, à procura de explicações e/ou interpretações, especulam sobre diagnósticos que, para eles, não parecem importantes.

A família vive uma situação tranquila, envolta em mistério e caracterizada por uma subtil ansiedade, afinal são testemunhas e participantes de uma dimensão insólita, diferente, que ultrapassa os limites da rotina que se resume em despertar às cinco da manhã e trabalhar, trabalhar e trabalhar.

A identificação do paciente com os animais, o facto de se sentir ligado a eles por meio de algum vínculo misterioso e a certeza indissolúvel de que entra em contacto com o espírito dos lobos que já povoaram as terras onde vive hoje apontam para o diagnóstico de delírio licantrópico.

Definição correta do ponto de vista do diagnóstico, mas que perde significado se realizada num contexto em que, do ponto de vista cultural, o fenómeno é considerado verdadeiro.

O caso tem, portanto, uma dupla leitura: uma psicopatológica, que vê o paciente cujo pensamento se enrijece numa interpretação errónea da realidade, uma visão que não se modifica pela lógica; e a outra de natureza antropológica, que vê a cultura como elemento fundamental na escolha do que deve ser considerado normal ou patológico.

A qualidade do pensamento de M. parece clara. Sua convicção absurda é bem estruturada, embora rígida, e perfeitamente integrada à realidade; não deixa espaço para nenhuma interpretação alternativa.

Cada manifestação – rumores nocturnos, um uivo inexplicável – é vista como a confirmação da própria convicção.

Nessas condições não se pode deixar de falar em delírio, mas também não é aceitável desconsiderar a enorme influência cultural da família à qual pertence.

O cenário é claro: o pai que aceita passivamente a certeza do filho porque ela se enquadra em seu próprio sistema de convicções; a mãe feliz com esse aspecto “sacro” do filho.

As manifestações deste, por sua vez, são provavelmente reforçadas pelo facto de agradarem à mãe e por uma configuração de ideias que não destoa em nada de suas crenças culturais.

Excepto nos momentos de desconforto nocturno, o sintoma não parece ser invalidante nem limita a vida profissional e afectiva de M., que tem uma boa relação com sua namorada. Ela, aliás, tem plena consciência de suas experiências.

Sem entrar no mérito das interpretações que podem ser oferecidas pelos diversos modelos teóricos (psicanálise, psicologia relacional, e assim por diante) como, por exemplo, a regressão para uma realidade fantasiosa para fugir de uma condição de vida pobre e privada de estímulos, a busca por uma cumplicidade relacional com a figura materna devido a uma antiga competição com o pai ou a projecção de fantasias persecutórias causada por conflitos pulsionais ou relacionais, permanece o facto de que o sintoma em questão não é a expressão de um indivíduo, mas de um contexto cultural que oferece um terreno fértil para alimentar-se e sobreviver.


Esta observação sobre o contexto do delírio licantrópico será levada em consideração quando identificarmos um distúrbio que, sem levar em conta a perda de contacto com a realidade típica do distúrbio esquizofrénico, tenha relação com um pensamento mágico, primitivo, que prenuncie uma malsucedida evolução não da psique do indivíduo, mas do grupo – ou microcultura – à qual ele pertence.

A certeza do absurdo Segundo a clássica acepção de Emil Kraepelin, o delírio é um erro mórbido do juízo que não pode ser modificado pela realidade ou pelo bom-senso.

Já na opinião de Karl Jaspers, para ser definida como tal essa manifestação deve apresentar três características fundamentais:

1. Convicção. A pessoa não realiza nenhuma elaboração da experiência, tende a rejeitar qualquer outra possível interpretação e cada elemento é considerado uma prova irrefutável que sustenta sua crença.

2. Sem lógica. O contraste das ideias do individuo com o bom-senso e a experiência objectiva não determinam nenhuma mudança.

3. Conteúdo inverossímil. O tema recorrente é sem fundamento, sendo muitas vezes bizarro e/ou insólito.

Armando de Vicentiis é psicoterapeuta, doutor em psicologia clínica pela Universidade La Sapienza, em Roma. Autor de tese sobre psicopatologia no misticismo cristão (Psicologia dei mistici cristiani, Scorpione, 1999).


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