O fenómeno do Y deitado aparece e desaparece a cada 30 dias, quando Vénus é observado na radiação ultravioleta PERALTA ET AL
Uma equipa de cientistas com portugueses e espanhóis encontrou uma resposta matemática para um fenómeno da atmosfera venusiana descrito há mais de 50 anos.
O planeta Solaris, nome do romance de ficção-científica de Stanislaw Lem publicado em 1961, era um enigma para os filósofos e cientistas da Terra. A certa altura do livro, o escritor polaco descreve as sucessivas teorias que as gerações de cientistas foram encontrando para explicar o oceano daquele planeta longínquo – uma espécie de entidade viva inteligente, unificada e consciente. Mas a base com que os pensadores analisavam essa entidade era a geologia e a ecologia terrestres, e a própria mente humana. As teorias resultantes nunca batiam certo com a realidade observada pelos cientistas no planeta, e o romance vai explorando estas limitações cognitivas, postas à prova diante de um objecto absolutamente estranho, numa experiência emocional extrema.
No fim do romance, percebemos que talvez nunca ninguém vá compreender e conhecer verdadeiramente Solaris. Mas a problemática lançada por Stanislaw Lem é vivida em qualquer área científica que se esforça por tornar o desconhecido em conhecido. Na astrofísica, o desafio começa logo, curiosamente, por outro planeta, este real e que está mesmo ao nosso lado: Vénus.
Durante mais de 50 anos, os cientistas tentaram interpretar a formação cíclica daquilo que parecia ser uma nuvem em forma de Y deitado, que toma conta da atmosfera venusiana na região do equador e em latitudes médias tanto no hemisfério Norte como no Sul. O artigo que descreveu pela primeira vez este fenómeno atmosférico é, por coincidência, do mesmo ano da edição deSolaris. O fenómeno é gigante e só se vê quando se observa Vénus no comprimento de onda da luz ultravioleta.
Nas últimas décadas, os astrofísicos têm desenvolvido modelos matemáticos para descrever este fenómeno e usaram sempre como base os princípios da dinâmica da atmosfera terrestre. Mas sem sucesso. Agora, uma equipa composta por cientistas portugueses e espanhóis resolveu olhar para o fenómeno a partir das características planetárias de Vénus e conseguiu obter, pela primeira vez, um modelo que se encaixa perfeitamente nas observações astronómicas.
A descoberta foi publicada nesta segunda-feira na revista Geophysical Research Letters. Além de ser um marco para o conhecimento sobre Vénus, a compreensão deste fenómeno pode ajudar a identificar a natureza de planetas extra-solares (noutros sistemas solares que não o nosso) e a avaliar o potencial destes planetas para terem vida tal como a conhecemos na Terra.
Um contraste declarado
Há um contraste declarado entre Vénus e a Terra. O facto de o segundo planeta a contar do Sol ser, em muitos aspectos, parecido com o nosso mundo torna esse contraste ainda mais misterioso. Os dois planetas terão a mesma composição geológica, pois estão relativamente perto um do outro no sistema solar. Além disso, têm dimensões semelhantes: Vénus tem 80% do tamanho da Terra. Ambos têm uma atmosfera e, há muito tempo, pensa-se que tenham existido oceanos à superfície de Vénus.
Mas as características comuns acabam aí. Algo aconteceu na evolução de Vénus que o tornou numa espécie de inferno. Hoje, o planeta tem uma atmosfera densa, rica em dióxido de carbono que provoca um efeito de estufa potente. À superfície, a temperatura média é de 450 graus Celsius. A pressão à superfície é equivalente à pressão existente nos oceanos terrestres à profundidade de um quilómetro. E a 70 quilómetros de altitude, as nuvens na região do equador viajam a uma velocidade média de 400 quilómetros por hora (os furacões mais fortes na Terra atingem cerca de 250 quilómetros por hora).
Além do dióxido de carbono, a atmosfera é rica em nuvens de enxofre. A topografia de Vénus apresenta 1600 grandes vulcões, mas nenhum parece activo. Por isso, ninguém sabe a origem actual destes compostos nem como foi gerado o efeito de estufa.
Por outro lado, o próprio planeta gira no sentido inverso da rotação da Terra e a uma velocidade extremamente lenta. Um dia em Vénus dura 243 dias terrestres, sendo assim mais longo do que um ano venusiano, com apenas 224 dias.
A nuvem em forma de Y deitado era, portanto, mais um traço de Vénus sem paralelo na Terra. O que se observa está a ocorrer a 70 quilómetros de altitude. “É um fenómeno fantástico, é muito forte”, diz ao PÚBLICO o astrofísico Pedro Machado, do Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço. O especialista em atmosferas planetárias assina o artigo juntamente com David Luz, do mesmo instituto, e três colegas espanhóis, incluindo Javier Peralta, do Instituto de Astrofísica da Andaluzia, coordenador do projecto.
No artigo agora publicado, o fenómeno é descrito como “um padrão recorrente cujo tempo de vida parece alternar-se entre ciclos de criação e destruição”. Estes ciclos são de cerca de 30 dias. O ciclo inicia-se quando surge uma zona mais escura na atmosfera venusiana – uma substância está a absorver uma maior quantidade de luz no comprimento de onda dos ultravioletas. Dia após dia, esta forma vai-se alterando, esticando nas latitudes mais a norte e a sul, e menos no equador, e originando uma figura que se parece um Y deitado. Depois, a figura esfuma-se até o ciclo se iniciar de novo.
“Até agora, o Y era um mistério porque não se sabia qual a sua causa, como se mantinha e como evoluía ao longo do tempo”, diz Pedro Machado, explicando que no início se pensava que eram nuvens em movimento. Depois, compreendeu-se que se tratava de um movimento ondulatório causado por uma mudança na pressão e na temperatura atmosférica. Mesmo assim, a ciência não conseguia prever matematicamente o que se observava.
“Não se conseguia explicar o fenómeno. Ao aplicar a teoria da dinâmica atmosférica que conhecíamos na Terra, a evolução temporal da onda Y não batia certo [com a realidade]. Houve várias aproximações e tudo parecia muito artificial”, explica o investigador. “O que pensámos é que tínhamos de voltar a olhar para as equações matemáticas da teoria ondulatória [da atmosfera] e aplicá-las de raiz usando as condições de Vénus, como a temperatura, a pressão e o facto de ser um planeta que roda lentamente.”
A rotação da Terra produz uma força centrífuga na nossa atmosfera tal como a rotação de Vénus. Mas “a Terra gira muito mais rapidamente, produzindo a aceleração de Coriolis”, adianta o cientista. Esta força resulta de uma interacção entre a velocidade das partículas atmosféricas e a rotação planetária e gera movimentos ciclónicos e anticiclónicos na Terra, mas está ausente em Vénus.
Por isso, os cientistas voltaram às equações básicas da física de fluídos e aplicaram-nas à realidade venusiana. “Foi preciso essa ruptura de paradigma”, explicou o investigador. “É preciso coragem para começar de novo.”
Para as equações, os cientistas usaram as medições da velocidade das partículas realizadas pelo grupo com base em observações do Very Large Telescope, o telescópio do Observatório Europeu do Sul no monte Paranal, no Norte do Chile, e da sonda Venus Express, da Agência Espacial Europeia e que esteve activa entre 2006 e Dezembro de 2014. Depois, foi partir pedra com a matemática: “Tivemos que estar a resolver equações diferenciais duras.”
E quando se fizeram simulações com base no novo modelo matemático, os resultados bateram finalmente certo. “Os tempos em que [a onda Y] aparece e desaparece dão completamente certo com o modelo”, diz Pedro Machado.
A respiração do planeta
Segundo o novo modelo teórico, o que se observa em Vénus é o resultado de uma oscilação periódica da temperatura e da pressão da atmosfera. Isto faz com que uma massa de ar ascenda na atmosfera até aos 70 quilómetros de altitude. Essa massa leva partículas suspensas – aerossóis – que absorvem a luz ultravioleta. Não se sabe a natureza destas partículas. “É um dos mistérios que persiste”, diz Pedro Machado. Suspeita-se de que sejam partículas à base de enxofre. “Daqui a um ano, ou mais, espero já ter descoberto do que é que são feitas”, antecipa o cientista.
O formato de Y deitado deve-se ao arrastamento das partículas devido aos ventos horizontais – que existem em altitude, são paralelos ao equador por não haver praticamente força de Coriolis e atingem uma velocidade média de 400 quilómetros por hora. Estes ventos existem até as latitudes médias, sendo barrados pelos vórtices polares, nos dois extremos do planeta.
No entanto, apesar de as velocidades dos ventos horizontais serem semelhantes em toda a sua extensão, como nas latitudes mais distantes do equador a circunferência de Vénus é mais pequena, os ventos completam aí uma volta ao planeta mais rapidamente do que no equador. Por isso, a onda vai sendo distorcida, criando a forma de um Y deitado.
Depois, algo muda na dinâmica atmosférica do planeta, a camada de ar com os aerossóis volta a descer e a região escura em Y desaparece. Até o ciclo recomeçar. Pedro Machado supõe que é a colisão entre os ventos horizontais e a região polar, mais fria, que cria esta espécie de batimento ou respiração, e que marca visualmente a atmosfera de Vénus. Mas ainda não tem a certeza.
Agora que esta marca foi compreendida à luz das regras que definem Vénus, ela poderá vir a ser usada no futuro para perscrutar os exoplanetas com potencial para a vida, considera o cientista: “Esta marca deixa uma impressão fortíssima e isso pode ser importante para distinguir exoplanetas que podem ser tão simpáticos [para a vida] como a Terra ou tão infernais como Vénus.”
fonte: Público
Sem comentários:
Enviar um comentário