sexta-feira, 6 de agosto de 2010

O Mediterrâneo é a floresta tropical dos cravos selvagens


O Dianthus cintranus encontra-se a caminho da praia da Ursa

Entre Portugal e a Turquia, existem mais de cem espécies de cravos selvagens que surgiram em apenas dois milhões de anos, uma rapidez que não se conhece em mais nenhuma planta. Encontrámos populações de dois cravos diferentes perto de Lisboa, circunscritas. Podem dar origem a novas espécies, podem desaparecer.

No meio das dunas a sul de Tróia, há uma linha invisível onde o Dianthus broteri deixa de existir.

O cravo selvagem com flor cor-de-rosa forma-se numa língua comprida paralela ao mar onde é a planta mais vistosa. Subitamente, uma fronteira invisível parece impedir a espécie de proliferar, apesar de a vegetação rasteira continuar por mais algumas dezenas de metros até à praia.

Luís Valente está no meio dos cravos, surpreendido. “Se calhar, o mar já esteve aqui”, sugere o biólogo de 25 anos. Se calhar, a concentração de sal no solo torna-se demasiado grande a partir de um certo momento para esta espécie.

A fronteira das flores é enigmática. Sabemos apenas que a magia é estarmos cheios de cravos à nossa volta e a poucos metros dali ficarmos sem eles.

Existem mais populações desta espécie noutros locais da Península Ibérica (Luís Valente não tem tanta certeza se são da mesma espécie, já lá vamos), mas bastava a construção de um grande hotel para aquele pedaço rosa desaparecer. Ficaria o vazio no lugar de um dos ramos da evolução dos cravos selvagens.

É que, nos últimos dois milhões de anos, o género Dianthus não parou de se multiplicar em novas espécies na região do Mediterrâneo. Parece uma pulsão tropical a latitudes temperadas, mas por razões completamente diferentes. O Dianthus broteri que constrói ali uma micropaisagem é um exemplo de um fenómeno que Luís Valente ajudou a descobrir.

Estamos entre Comporta e Tróia por causa das descobertas da equipa de investigadores do Jardim Botânico de Madrid, onde o português passou os últimos anos a fazer o doutoramento. Mas o dia começou mais cedo, junto ao desfiladeiro que vai dar à praia da Ursa, a norte do cabo da Roca, no Parque Natural de Sintra-Cascais.

Aqui existe outra espécie de cravo bastante mais rara que o biólogo nunca tinha visto ao vivo antes de preparar esta visita guiada para o P2.

Percorremos o caminho que vai dar à praia, que parece ser feito de granito a desfazer-se. A encosta que descamba em falésias está coberta com uma vegetação tipicamente mediterrânea com os arbustos meio secos.

“Nota-se que a água deles vem da humidade”, explica o cientista.

Do lado esquerdo e direito, vamos olhando à procura dos primeiros cravos selvagens. “O cintranus é este rosado”, aponta o biólogo. Esta espécie só tem uma cor. No caso da população que está em Tróia, há uma gradação do esbranquiçado para o rosado.

O chorão, a espécie invasora conhecida pelas suas folhas carnudas, está por todo o lado. Pode extinguir o Dianthus cintranus? “Pode, completamente”, responde. Mas o local ainda está saudável, pelo menos comparado com outros sítios. “Ali, no cabo da Roca, já está tudo tomado pelo chorão, Dianthus cintranus já não existe de certeza.”

No meio das encostas e escarpas verdes, Luís Valente encontra na geografia e na vegetação semelhanças com a paisagem da Cidade do Cabo, na África do Sul. A comparação não é inocente por duas razões: a região do Cabo, no Sul do continente africano, tem um clima igual ao Mediterrâneo e parte do trabalho de Luís Valente foi feito lá.

A ideia inicial da equipa foi tentar perceber por que é que há plantas que proliferam muito mais numa região do que noutra. “Escolhemos dois grupos: um que tem muitas espécies na Europa e poucas na África do Sul, que são os cravos; e outro grupo que tem muitas espécies na África do Sul e poucas no Mediterrâneo, que são os gladíolos”, tinha-nos explicado Luís Valente antes da visita.

A equipa foi ao campo nos dois continentes recolher indivíduos para analisar as diferenças genéticas e construir uma árvore evolutiva dos dois géneros. Contavam explicar a diversidade actual, mas o resultado foi surpreendente: “Quase não há diferenças genéticas entre as espécies de cravos: isso significa que têm uma origem muito recente. Pensávamos que íamos encontrar o contrário, que os cravos estariam na Europa há muitos milhões de anos e por isso é que há tantas espécies e teriam chegado há pouco tempo à África do Sul.”

De rocha em rocha

Mas não, o cravo de Sintra e o que está na região de Tróia só têm um milhão de anos de separação, embora sejam hoje duas espécies com características diferentes.

Pomo-nos de cócoras ao lado de Luís Valente enquanto este aponta para um indivíduo e vai buscar o jargão científico para nos descrever essas diferenças. “As pétalas são meio dentadas, meio serradas, a flor é glabra, não tem pêlos. Há muitas plantas com pêlos na garganta corolina, esta não tem. As sépalas formam o tubo do cálice e por isso chamam-se brácteas.”

Temos a forma e o número das pétalas e das sépalas, como é que nascem (nestes cravos, as pétalas parecem estar sobrepostas), a disposição das folhas, a corola (a região da flor constituída pelas pétalas), o cálice (constituído pelas sépalas). O perfil do Dianthus cintranus é transformado numa súmula de conceitos académicos capaz de criar uma imagem mental.

“Os cravos que temos nas lojas, os populares, têm muitas pétalas, mas os cravos selvagens são muito mais bonitos”, diz o biólogo.

Nenhuma característica é, só por si, distintiva. São necessárias muitas para se identificar esta espécie e ajuda compará-la com outros cravos. “Vamos ver que no [Dianthus] broteri o cálice é muito mais comprido e isso é muito importante para os insectos polinizadores.” Depois há a informação genética que a equipa destapou, capaz de questionar o que a Botânica nos diz.

O género Dianthus evoluiu há cerca de sete milhões de anos na região da Turquia e da Grécia e espalhou-se para o resto da Europa e da Ásia. Entre o Mediterrâneo e a África do Sul existem seis espécies de cravos nas regiões tropicais. “Em África, há um corredor que tem um clima mais seco que são as montanhas e que permitiu [aos cravos selvagens] saltar de ‘pedra em pedra’”, explicou o investigador, traduzindo do inglês a expressão steping stone.

Desta forma, os cravos chegaram à região da Cidade do Cabo. Mas o género não se diversificou e só deu origem a nove espécies naquela região, apesar de o clima ser idêntico ao do Mediterrâneo há sete milhões de anos. “Quando os cravos chegaram, já lá estavam centenas de outras espécies adaptadas ao clima”, explica.

Aqui foi diferente. Existem 26 espécies na Península Ibérica e só em Portugal estão identificados dez cravos selvagens de Norte a Sul. O género chegou cá há cinco milhões de anos, mas a divergência genética terá começado a ocorrer há dois milhões de anos, como no resto da região até à Turquia.

O que é aconteceu nesta data? “Esta zona secou muito e começámos a ter o clima mediterrânico, com Verões muito secos e Invernos em que chove. Alguma coisa desse clima influenciou a diversificação dos cravos, porque parece que estão muito adaptados ao clima mediterrânico”, explica Valente.

Foi assim até à região da Turquia. Uma explosão de espécies novas. Mais de cem. Se olharmos para a árvore evolutiva que aparece no artigo de 12 de Abril da Proceedings of The Royal Society B, em que Luís Valente é o primeiro autor (Pablo Vargas, também de Madrid, e Vincent Savolainen, do Imperial College de Londres, são co-autores), vemos raminhos e mais raminhos de cravos selvagens que apareceram há menos de dois milhões de anos.

“A grande descoberta é que o evento de diversificação mais rápido de sempre em plantas foi na Europa, com os cravos”, conclui o biólogo. Esta produção de novas espécies compete com os fenómenos de diversificação mais acelerados que se conhece, como o dos ciclídeos, um grupo de peixes que pode ter em todo o mundo alguns milhares de espécies e que existe, por exemplo, em lagos de África como o Tanganica ou o Vitória.

A ideia de uma Europa desinteressante em termos de biodiversidade e evolução não se enquadra no Mediterrâneo vibrante dos cravos selvagens. Mas é um mundo delicado. A espécie de Sintra está ameaçada. Existe em poucos lugares e ali o número de indivíduos é pequeno e está disperso, ao contrário da mancha gorda de Tróia.

O biólogo proíbe-nos de arrancar o Dianthus cintranus. A experiência vive do olhar e pára no toque.

“É lindo, nunca tinha visto esta espécie.”

Flor de Verão

Os cravos selvagens começam a florescer a partir de Maio. É por isso que a saída de campo foi programada para o início do Verão.

“O campo é sempre novo, vimos aqui na próxima semana e já não temos aquela flor, temos outras completamente diferentes”, assegura o biólogo.

A caminho da região da Comporta, estão 29 graus. As dunas da Reserva do Estuário do Sado já têm sabor à praia do fato de banho e do gelado, apesar de o areal branco estar com poucos guarda-sóis. A vegetação das dunas também é a de Verão. “Agora, só existem quatro espécies de plantas em flor, antes havia mais.”

Luís Valente não sabe porque é que os cravos só florescem na estação mais quente. “Não há um estudo nessa área, é uma questão genética, tinha que se procurar o gene.” Mas as flores de Verão têm que ser competitivas, há menos insectos e é necessário conquistar todas as visitas possíveis.

“A percentagem de cada espécie de insectos varia conforme o local, e isso é muito importante a nível microevolutivo. Se estamos num sítio e recebemos três visitas de abelha de uma espécie e quatro visitas de outra espécie, vamos tentar adaptar a nossa flor para atrair essas quatro visitas”, explicou o biólogo. “Mas se calhar noutra montanha recebemos ao contrário, é um mosaico.”

No caso do Dianthus broteri, vêem-se perfeitamente os guias do néctar para os polinizadores – pequenos desenhos pretos nas pétalas que funcionam como pista de aviação para a aterragem bem sucedida do insecto. A espécie é polinizada por traças da família dos esfingídeos que vêm ao final da tarde.

A incursão nas dunas à procura do D. broteri é diferente do que foi com o D. cintranus. A paisagem é seca e não há um caminho, o que obriga a pisar a areia num movimento mais lento. De repente, estamos rodeados de flores que vão do rosa ao branco. “Nunca vi uma população com tantos cravos, é quase a planta dominante”, diz Luís Valente com satisfação.

O cravo é maior do que o D. cintranus, tem um ar quase de arbusto. As pétalas são laciniadas, recortadas em tiras estreitas e irregulares – explica o dicionário, e confere. Parece que alguém utilizou uma tesoura e cortou parte das pétalas em pequenas tiras. O D. cintranus tem as pétalas serradas na extremidade.

Cem quilómetros de distância e paisagens que só têm em comum o mar dão espécies diferentes. Com os cravos selvagens é assim em todo o Mediterrâneo. A geografia é determinante neste processo.

“É o que chamamos de radiação não adaptativa”, diz Luís Valente. A diferenciação das espécies de cravos não é feita através da adaptação à ecologia, mas sim por separações geográficas, como quando duas populações de cravos estão em ilhas diferentes e por isso diferenciarem-se ao longo do tempo.

“Estamos num sítio, e por estarmos ali ficamos separados de outro. É um papel da geografia em vez de ser da ecologia.” O biólogo dá um exemplo oposto, um grupo de 28 espécies de gladíolos que na África do Sul é polinizado por várias espécies: pássaros, escaravelhos, traças, borboletas, abelhas. “Há grandes mudanças na ecologia das espécies, a flor muda radicalmente”, diz Luís Valente.

Multiplicação de ADN

A adaptação ao meio ambiente continua a ser imprescindível. Nas dunas, os indivíduos têm que estar adaptados a um ambiente seco e salino. Entre os cravos, existem outras plantas rasteiras, como as armérias. O chorão também desponta aqui e ali, apesar de ter um aspecto doente, como se tivesse sido queimado. A planta infestante pode vir a ser uma ameaça à população.

Segundo os manuais, esta espécie está distribuída desde Tróia até Azuebar, no Sul da Catalunha, sempre junto à costa. Mas a equipa de Luís Valente mostrou que as diferentes populações podem estar a transformar-se em novas espécies.

“Quando comparamos as sequências de ADN entre as diferentes populações dessa espécie, verificamos que já está a haver diversificação”, explica o investigador. A característica mais evidente é a quantidade de ADN que varia consoante a população. Há duplicações do ADN, um fenómeno que acontece durante a reprodução dos indivíduos.

Os cravos de Tróia, por exemplo, têm o dobro do ADN do que a população original, mas os cravos que existem em Doñana, em Espanha, têm seis vezes a quantidade de ADN. Era como se, nos humanos, houvesse uma população que, em vez de ter 46 cromossomas, tivesse 276.

Estes fenómenos de poliploidização (duplicação de ADN durante a reprodução) ocorreram independentemente nos vários locais. A espécie foi anteriormente definida pela morfologia como uma só, mas no laboratório já existem populações que não se conseguem cruzar. A especiação no Mediterrâneo continua.

“A evolução é uma coisa muito mais dinâmica do que o que se pensava, que está a acontecer agora”, constata o investigador.

A mancha rosa das dunas transforma-se por isso numa relíquia tão vulnerável como a população dispersa de D. cintranus. Luís Valente relembra que hoje só existem cinco por cento da floresta mediterrânica original. Se as espécies que existem têm uma distribuição tão pequena, a conservação desta percentagem ainda é mais urgente.

“Este cravo que está aqui é um ramo da árvore evolutiva, porque é único. Se perdemos o raminho da árvore, perdemos riqueza”, tinha dito o biólogo antes de sairmos de Sintra. A fronteira invisível onde a população de Tróia termina denuncia de uma forma ambígua essa riqueza.

Luís Valente volta a tentar: “Se calhar, ali chegaram os pinheiros e as acácias e ocuparam o lugar, se calhar, esta duna é mais antiga. Às vezes, é uma questão de sorte…”

Mesmo que nunca se descubra o motivo, é o contraste causado pelos cravos que permite a magia. Como se o mais importante fosse a possibilidade da diversidade, onde quer que aconteça.

E o estar lá.

“Eu tinha um gladíolo que só nascia mesmo na praia”, explica o biólogo, referindo-se ao Gladiolus gueinzii, da África do Sul. “Apanhava com as ondas, era a melhor planta, tínhamos que ir lá e molharmo-nos.”

fonte: Público

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