A múmia de Pabasa prepara-se para entrar na máquina de TAC
Deitadas numa nuvem de algodão, e enroladas em lençóis brancos, dentro das caixas de madeira que as hão-de transportar, as três múmias egípcias do Museu Nacional de Arqueologia (MNA), em Lisboa, pareciam... mortos.
Curiosamente, essa manhã de sexta-feira foi o único momento de todo o processo que vamos contar em que elas fizeram lembrar mortos. Mais tarde, libertas dos lençóis brancos, eram apenas uma presença silenciosa, confortável, com um discreto sorriso simpático, parecendo olhar com alguma ironia para a azáfama que as rodeava.
Comecemos então por essa manhã de sexta-feira, dois dias antes de as três múmias serem levadas para as instalações do IMI (Imagens Médicas Integradas), na Av. da República, em Lisboa, para fazerem radiografias digitais e TAC (tomografia axial computorizada). Na sala de antiguidades egípcias do MNA, o entusiasmo era grande.
O egiptólogo Luís de Araújo, do Instituto Oriental da Faculdade de Letras de Lisboa, andava de um lado para o outro entre as caixas onde as múmias já estavam deitadas. "Temos que estar preparados para tudo", avisava. "Pode haver, no meio das faixas de linho, amuletos, mas também pode não haver nada."
Eram os últimos preparativos para dar início ao Lisbon Mummy Project, um estudo inédito em Portugal e só possível através de uma parceria entre o IMI, que disponibilizou as instalações e a equipa de investigação liderada por Carlos Prates, a Siemens, que patrocina o projecto e disponibiliza uma estação de trabalho de pós-processamento avançado da informação digital, e o MNA, cujo director, Luís Raposo, coordena uma equipa que integra Luís de Araújo e ainda o arqueólogo Álvaro Figueiredo, do University College de Londres.
Primeiro as apresentações. Quem são as três múmias, duas com sarcófago e uma sem, que aguardam pacientemente nas suas camas de algodão? Da primeira, sabemos o nome - e logo, numa familiaridade que nos parece natural, começamos todos a referir-nos a ele como Pabasa. Que este era o seu nome e que foi sacerdote semati algures entre os séculos III e I a.C. - ou seja, explica Luís de Araújo, era o responsável por vestir a estátua do deus Min - é algo que ficamos a saber pelo texto escrito no sarcófago, hieróglifos que o professor decifra rapidamente percorrendo-os com um dedo.
Mas, quanto a informação, é apenas isso. "Ao contrário do que muita gente julga, estes textos não contam a vida do defunto. Nem há espaço para isso", continua Araújo. "São textos mágicos e profilácticos que pedem coisas para garantir a eternidade do defunto. E a eternidade só se garante com duas coisas: uma é acreditando que há uma vida eterna, e a outra é tendo um corpo bem conservado e bem alimentado. Eles são muito pragmáticos. Pedem pão, cerveja, carne de bovino, de aves, leite, vinho, incenso, baixela, roupas, um belo sarcófago."
A única das múmias que não tem "um belo sarcófago" (não se sabe porquê, provavelmente ter-se-á perdido) torna-se inevitavelmente menos familiar, já que temos que nos referir a ela como "múmia ptolemaica" (é dos séculos IV-I a.C.). O museu descreve-a como um "corpo humano, aparentemente masculino, envolvido em sudário de linho [...]. Não se consegue perceber a inscrição do nome do defunto, que não apresenta o título ou a profissão." Mas a esperança de todos na sala é que daí a dois dias já saibamos muito mais sobre ele.
O dia dos exames
Finalmente o terceiro corpo. É o mais antigo (séculos IX-VII a.C.), terá um 2700 anos, e tem, sem dúvida, "um belo sarcófago", mais claro que o de Pabasa (que é em tons mais dourados), com o cabelo num azul-acinzentado e as pinturas em castanhos e azuis. Chama-se Irtieru, o que significa "Que os dois olhos se voltem contra eles", numa referência aos olhos de Hórus e aos inimigos do defunto. "Não está aqui o cargo dele, mas uma coisa é certa: era uma pessoa importante, senão não teria direito a este sarcófago. Os corpos dos escribas, dos governadores, dos arquitectos, dos engenheiros, dos príncipes, dos reis, esses iam para os túmulos melhores. A esmagadora maioria da população - camponeses, barqueiros, pescadores, mineiros, agricultores - eram lançados para os buracos do deserto, sem qualquer mumificação. Ou melhor, tinham a mumificação natural de um país que não tem humidade nenhuma."Feitas as apresentações, as múmias vão descansar aqui ainda no sábado, e domingo de manhã cedinho entram no enorme camião com condições especiais de transporte para viajarem até à Avenida da República.
É domingo de Agosto, e o centro de Lisboa está deserto. O IMI abriu hoje só para as múmias (nada disto podia ser feito num dia de funcionamento normal), mas a equipa de Carlos Prates vestiu as batas brancas e está ansiosa por ver os resultados. Estão presentes alguns jornalistas, há máquinas fotográficas e câmaras de filmar. Há um momento de silêncio respeitoso quando uma múmia é retirada da caixa e colocada numa maca. Depois os fotógrafos começam a disparar.
No início do século XIX, para se estudar uma múmia, era preciso desenfaixá-la, e isso era muitas vezes um espectáculo - para o qual a alta sociedade pagava bilhete. Mas, por muito entusiasmante que fosse, era um processo que destruía o objecto de estudo. A partir da descoberta dos raios X, em finais do século XIX, tornou-se possível radiografar múmias e a prática tornou-se vulgar durante o século XX. No entanto, resultavam geralmente imagens pouco claras. As novas tecnologias vieram mudar isso. Em 2000, a múmia de Nesperennub foi analisada por tomografia computorizada num hospital de Londres - foi a primeira vez que a tecnologia foi aplicada a um corpo completo de uma múmia.
E, descobriu-se, por exemplo, conta o livro Mummy: the inside story, do Museu Britânico, que Nesperennub tinha uma espécie de prato tosco, de barro, colado no cimo da cabeça. Os investigadores nunca tinham visto nada semelhante e não tinham explicação. Não havia nenhuma abertura no crânio, até porque o cérebro era geralmente extraído do corpo pelo nariz. Teria sido um erro dos embalsamadores? É possível que sim. Talvez o prato tivesse sido usado para segurar as resinas que eram deitadas sobre o corpo e tivesse, acidentalmente, ficado colado à cabeça. E talvez os embalsamadores tivessem enfaixado o corpo pensando que o seu erro nunca seria descoberto...
O mito do barco alemão
Até agora, o MNA não tinha dado autorização para que fossem realizados exames sobre as múmias da sua colecção, que, com mais de 500 peças, é, explica Luís Raposo, "a mais importante colecção de antiguidades do Antigo Egipto que existe em Portugal", mas não a única (a da Gulbenkian, por exemplo, tem excepcionais peças de coleccionador). "Temos uma regra cada vez mais rigorosa: não utilizar métodos destrutivos. Sempre que, no passado, nos pediram para abrir sarcófagos, fazer sondagens nas faixas da múmia, nunca autorizámos. Estivemos sempre à espera de métodos como estes, não destrutivos."
Pabasa está já sobre a maca, pronto para avançar para a sala de raios X. Lá dentro, no meio da maquinaria branca, tem por companhia, no tecto, imagens reconfortantes de árvores. A sua companheira múmia ptolemaica já por ali passou, e está agora na sala ao lado, a fazer uma TAC. Luís Raposo recorda que quando, na primeira fase deste projecto, o museu levou ao IMI múmias de pequenos animais para exames semelhantes, a máquina manteve a gravação automática que pede ao cliente que "não se mexa, não respire" - um aviso claramente desnecessário neste caso. A equipa de radiologia junta-se em frente aos computadores a analisar as primeiras imagens já obtidas da múmia ptolemaica. Tudo indica que é homem e, para desilusão de Luís de Araújo, não tem quaisquer artefactos. Tem as mãos cruzadas sobre o peito, e algumas fracturas nos braços (muito direitas, o que pode indicar que foram feitas propositadamente para lhe colocar os braços naquela posição) e também algumas nas pernas. Daí a pouco, as primeiras imagens que mostram nitidamente o esqueleto já estão a rodar no ecrã, permitindo ver a múmia sem nome de todos os pontos de vista. "Vejam os dentes, tem uma dentição perfeita", entusiasma-se um dos técnicos.
As atenções concentram-se outra vez na sala de raios X. Pabasa "não tem escaravelho, nem sequer amuleto", suspira o egiptólogo. "Confirma-se que é homem", diz alguém. Os especialistas admitiam que o esqueleto pudesse ter sofrido alguns danos porque supõe-se que tenha estado de pé quando pertenceu à família Palmela e estava exposta no Palácio Palmela, junto ao Largo do Rato, em Lisboa. Esta é a única das três múmias cuja origem está documentada. Araújo ainda se lembra de um dos membros da família lhe ter contado que, quando era pequeno, via os sarcófagos expostos nos corredores do palácio onde andava a brincar.
A proveniência das outras duas é um mistério. Tem perdurado um mito romântico sobre elas, mas Luís de Araújo diz peremptoriamente que chegou a altura de acabar com ele. Rezava esse mito que, na I Guerra Mundial, um barco alemão chamado Cheruskia tinha sido aprisionado pelas autoridades portuguesas, quando passava no Tejo, por suspeita de transporte de armas. Afinal, o navio traria, para além das armas, muitos caixotes cheios de antiguidades egípcias.
O mito tinha mesmo sido enriquecido com um episódio rocambolesco: sem saber como classificar as múmias egípcias que viriam no Cheruskia, um dos responsáveis da alfândega teria tocado numa com o dedo e levado à língua, constatando que era salgada, o que o levou a colocá-la na categoria "Sal".
Nada disto é verdade, explica o egiptólogo, que foi estudar os arquivos do Ministério dos Negócios Estrangeiros e descobriu que o Cheruskia (entretanto integrado na frota nacional, passando a chamar-se Leixões) não só não fora aprisionado - mas refugiara-se no Tejo, juntamente com vários outros navios, numa altura em que Portugal ainda não entrara na guerra -, como trazia apenas antiguidades assírio-babilónicas provenientes de escavações de arqueólogos alemães na Mesopotâmia. Ou seja, nada de múmias egípcias.
Quando à história do sal, virá, segundo Luís de Araújo, de um episódio relatado na Correspondência de Fradique Mendes, de Eça de Queirós, em que a passagem de uma múmia pela alfândega levanta precisamente aquele problema. "A solução é taxá-la como arenque fumado."
Perante a conclusão de que as múmias não vieram no Cheruskia, Araújo admite que elas possam também ser provenientes da colecção da família Palmela, sendo bastante menos provável que tivessem sido trazidas pela família real - D. Amélia e os dois príncipes, D. Luís Filipe e D. Manuel, viajaram até ao Egipto em 1903 (no catálogo do MNA sobre as antiguidades egípcias, há uma fotografia da comitiva pousando junto a uma pirâmide, os homens de bigodes revirados, polainas e chapéus de palhinha e a rainha majestosamente sentada em cima de um dromedário). Mas, apesar de a família real ter recebido ofertas e ter trazido algumas peças egípcias, não há registo de que entre estas estivessem múmias. Pabasa já foi analisado e está a ser retirado da sala para dar a vez a Irtieru. Para além do sexo, será possível, com este estudo, explica Carlos Prates, saber coisas como a idade da morte, a estatura, os métodos de embalsamamento usados, qual foi a via de acesso à cavidade abdominal, se tem pacotes viscerais, se houve introdução subcutânea de alguma substância para dar bom aspecto à múmia, se foi colocado no interior linho envolvendo os restos viscerais (ou se estes foram completamente removidos), que tipo de doenças existiam em vida e, eventualmente, a causa da morte.
Tecnologia avançada
As múmias do MNA esperaram muito tempo, mas terá valido a pena: estão a ser examinadas numa altura em que a tecnologia atingiu um enorme grau de precisão. "Estamos a adquirir informação sobre o objecto, neste caso a múmia, e a decompor essa informação em pequenos cubos que têm um quarto de milímetro em cada face", explica Bento Galamba, representante da Siemens, que está a acompanhar o projecto.
"Será como um objecto de Lego construído com esses bocadinhos muito pequenos. O que vamos ter é o máximo que é possível tecnologicamente hoje em dia. Estamos a tentar que as quadrículas que se vêem numa imagem digital sejam tão pequenas que não sejam perceptíveis. No limite, com esta resolução, com uma pessoa viva, e se for um homem, conseguimos perceber se tinha cortado a barba antes." A Siemens já fez um projecto com múmias, durante quase um ano, no Egipto, mas na altura a tecnologia ainda não estava tão avançada.
A intenção de Luís Raposo é mais tarde publicar os resultados deste estudo num livro que seja vendido no MNA e, eventualmente, ter na sala de antiguidades egípcias tecnologias interactivas que nos permitam viajar pelo interior das múmias - como estamos, aliás, a fazer agora, no computador instalado numa sala do IMI baptizada como per-ankh (casa da vida).
Avançamos pelo corpo dentro, seguimos pelos ossos e à nossa frente surge, do escuro do ecrã, o crânio da múmia sem nome, com a sua dentição perfeita e os seus olhos vazios. Vem de há mais de dois mil anos e nós conseguimos vê-la sem a podermos olhar. Ela continua ali, enrolada no seu sudário de linho coberto de palavras mágicas destinadas a assegurar-lhe a eternidade, e mesmo assim nós vemos-lhe o rosto, descobrimos-lhe os ossos fracturados, procuramos sinais de doenças, qualquer pista que nos fale da vida que levou.
"A mim, [estes corpos] interessam-me quando ainda estavam vivos", diz Luís de Araújo. "Quando eram apenas candidatos a múmias. O que se está aqui a fazer, para além do aspecto médico e científico, é um verdadeiro trabalho de ressurreição, um hino à vida."
Deixamos Carlos Prates e a sua equipa a trabalhar, com Luís de Araújo a espreitar, ansioso, sobre os seus ombros, e a constatar, desiludido, que afinal nenhuma das múmias tinha amuletos escondidos. Voltaremos ao fim do dia.
Às sete da tarde, já restam poucas pessoas nas instalações do IMI. As múmias voltaram à sua sala no MNA, depois de os técnicos terem recolhido centenas de milhares de imagens que durante os próximos meses serão analisadas por Prates e a sua equipa - nos fins-de-semana e momentos livres, porque este é um projecto de "paixão", e porque o IMI tem que continuar a trabalhar para os vivos. Prates prevê que, dentro de três meses, já haja algumas conclusões, mas para um estudo aprofundado será necessário bastante mais tempo. "Ressurreição"
Para já, a tarefa foi sobretudo de recolha da informação. Mas as folhas seguras com pequenos smileys amarelos no quadro da sala per-ankh, que mostram cada uma a sua múmia e, ao lado, um corpo humano, já têm algumas indicações anotadas. Sabemos que Pabasa tinha dois olhos artificiais, e que Irtieru tinha as articulações da mão em óptimo estado - seria jovem e não teria um trabalho manual pesado (é possível que fosse também sacerdote). Havia ainda uma espécie de resina bastante densa em torno do corpo.
É cedo para conclusões, mas Carlos Prates arrisca uma: Pabasa seria coxo. Olhamos para o ecrã e mergulhamos novamente dentro do sarcófago. "Furamos" a madeira na zona dos pés e encontramos uma "imagem quística" no pé esquerdo - sinal de que poderia ter havido uma entorse e que se criou um problema que, possivelmente, provocaria dores e levaria Pabasa a coxear.
Luís de Araújo faz um ar sonhador. Daquele a quem tão familiarmente chamamos Pabasa já sabíamos que era "filho de Hor" e que seria o sacerdote do templo encarregue de vestir a estátua de Min, deus da fertilidade, representado habitualmente por uma figura com um pénis erecto. Podemos agora imaginá-lo a coxear enquanto avança para a estátua, com as vestes na mão. E quem sabe se, daqui a alguns meses, não conseguiremos já dar um rosto a este homem.
"O embalsamamento", explica o egiptólogo, "é um acto de amor para com alguém que partiu e que vai para outra vida". "Mas sobretudo é um acto de religiosidade imensa, que implica a crença de que há uma vida eterna", continua.
E quem sabe se, depois de séculos num túmulo no Egipto, depois de uma viagem para ocidente (pela mão de quem?), de uma passagem pelos corredores do Palácio dos Palmela e de muitos anos na sossegada sala do MNA, Pabasa não começou este domingo a renascer frente aos nossos olhos, na Av. da República, em Lisboa, numa sala a que alguém se lembrou de chamar "casa da vida".
fonte: Público
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