sábado, 7 de agosto de 2010

Em busca da muralha escondida


Lisboa romana, Lisboa moura, Lisboa dos cruzados: o desenho da cidade fez-se entre muros e depois galgou-os, digeriu-os, apagou-os. Procurar, estudar e iluminar o que resta é o projecto do Museu da Cidade.

Numa rua do bairro da Sé, as picaretas abrem o que parece uma vala. Telefone? Gás? Cabo? À volta, uma cerca de metal isola o trabalho. Um cartaz explica: é de "Estudo e Valorização da Cerca Velha de Lisboa" que se trata. A cerca velha (em oposição à cerca nova, a muralha mandada construir em 1373 pelo rei D. Fernando para suster as invasões castelhanas e que ganhou o cognome de "fernandina), passa algures por aqui, não se sabe exactamente onde.

A sondagem não resulta: fecha-se o buraco e recomeça-se mais abaixo, no largo de Santo António da Sé, onde, crê-se, estará situada a "porta de ferro", a entrada principal da cidade moura. Um buraco, dois, e nada. "Estamos a tentar perceber onde ela está. Andamos mais para oeste ou para este, à procura." A arqueóloga Manuela Leitão, 47 anos, coordenadora do projecto, tem uma explicação para a dificuldade: "Esta zona sofreu obras de reestruturação urbanística depois do terramoto de 1755. Limparam muita coisa e as cotas das ruas foram rebaixadas." Pode ser até que nada se encontre e que o traçado da muralha permaneça estimado, como na obra de referência do olisipógrafo Vieira da Silva (que nos finais do século XIX desenhou o traçado com base em estudos documentais), numa curva que prossegue a linha recta da Rua da Padaria e sobe na direcção do castelo, talvez sob os jardins suspensos que fazem das traseiras da Rua de São Mamede ao Caldas uma das maravilhas invisíveis de Lisboa. Mais um sortilégio escondido, então, o desta muralha que na sua zona oriental é visível em vários troços - aquilo que Manuela chama "panos". "Com o tempo a muralha foi 'engolida' pelo crescimento da cidade. Há uma série de edifícios que a usaram como mais uma parede, as torres foram sendo ocupadas. Mesmo quando não se consegue ver ela continua perceptível pelo alinhamento das ruas, das fachadas dos prédios." Também as escavações da parte oriental da muralha têm tido mais sucesso: a parte da cidade que lhe corresponde mantém as mesmas características há muito e os solos não sofreram aquilo a que a arqueóloga dá o nome de "desmobilização de terras", estando preservados todos os níveis ou estratos antigos: "Os níveis mais antigos que encontrámos pertencem à Idade do Ferro, século VI antes de Cristo."

Viabilizado financeiramente em 2008 através de uma parceria com o Instituto do Turismo, este projecto, no qual concorrem "dezenas de pessoas", incluindo, além dos investigadores - arqueólogos, geólogos, historiadores e antropólogos - desde cavadores a polícias, passando por bombeiros, existia como ideia no Museu da Cidade desde o final dos anos 90, como forma de recuperar a memória e a presença de um monumento que, afirma Manuela Leitão, "estava esquecido". A ideia é localizar e assinalar com o máximo de certeza possível as portas e alinhamentos dos cerca de dois quilómetros da muralha medieval, restaurar os panos expostos e proceder à sua iluminação monumental, assim como estabelecer percursos pedonais com sinalização ao longo da muralha. "A última fase do projecto será a instalação de um centro interpretativo sobre a muralha de Lisboa, que terá como objectivo principal o dar a entender a muralha inserida nas várias cidades onde esteve." Várias muralhas, várias cidades: se o nome dado à cerca medieval é "velha", não se trata afinal da mais idosa. Há vestígios de uma muralha do século I e de outra construída mais tarde, no século III/IV, ambas pelos romanos e cujo traçado terá sido, crê-se, aproveitado em parte pelo muro medieval - primeiro islâmico e depois cristão - que se lhe seguiu. É dentro desse mistério, o de saber a que ponto as muralhas romana e medieval se sobrepõem, que Vítor Filipe, 35 anos, passa os dias, no rés-do-chão da Casa dos Bicos. "Estamos a tentar perceber coisas que as escavações mais antigas não esclareceram. Encontrámos algumas estruturas que não eram conhecidas e estamos a tentar interpretá-las." O trabalho, de paciência - "A arqueologia às vezes é um pouco chata, não corresponde à ideia romântica que as pessoas têm e a parte mais interessante, a da descoberta, acaba por ser reduzida" -, e muito complexo, explica o arqueólogo, pela segmentação que torna mais difícil compreender a articulação das estruturas encontradas e pela presença da água, que não só dificulta a visão como mistura os níveis. "Temos todas as sondagens ao nível freático, algumas com mais de dois metros de profundidade. Às vezes é um pouco frustrante, mas também é aliciante por ser tão complexo." Até ao final de Agosto, altura em que está calendarizado o final da intervenção na Casa dos Bicos, Vítor espera satisfazer duas grandes curiosidades: "Uma é a da cronologia da construção da muralha romana tardia (que já encontrámos) e se a cerca fundacional romana passa ali. Outra é de quando é a construção da fábrica romana de salga de peixe cujos tanques se encontraram. Sabemos que a muralha fundacional romana tem dois metros de espessura e que a muralha a seguir, do séc III, tem três. Está lá uma muralha com um metro de espessura, mais antiga que essa, mas não sabemos se é a fundacional ou outra, por exemplo da fábrica."

Vítor Filipe, que não faz parte dos quadros do Museu da Cidade, entrou no projecto em Dezembro, tendo começado pela escavação da rua São João da Praça (junto à Sé de Lisboa), onde foi descoberto um pano da muralha durante as obras de um restaurante, o Páteo de Alfama (em todas as obras que envolvam "remexer terras" na zona classificada tem de haver escavações arqueológicas antes), que o integrou no seu espaço. Aliás, o acolhimento dos habitantes e comerciantes da zona de incidência ao projecto tem sido, diz Manuela Leitão, de bastante interesse. "Por exemplo: há um snack bar que se chamava Arco Íris e mudou de nome, para 'Porta de Alfama', porque uma das portas da muralha era naquela zona; vêm-nos perguntar quando fazemos uma exposição para mostrar o que encontrámos, comen- tam 'Ai que giro'. É bom que as pessoas tenham esse entendimento, porque o património é de todos."

O património como casa de família e morada, como um lugar em que se caminha em camadas de tempo e sentido, aprendendo a ver. É o caso do historiador Miguel Gomes Martins, 45 anos, da divisão de arquivos da Câmara Municipal de Lisboa. "Comecei a tomar mais um pouco de atenção aos locais onde ponho os pés e a olhar um pouco mais para as paredes em vez de só olhar para cima à procura das torres." Há três meses no projecto da cerca velha, este medievalista, cujo trabalho é o completar, informar ou contrapor, através da pesquisa documental, as descobertas arqueológicas, já teve algumas surpresas: "Foram achadas barbacãs - que são uma espécie de pré-muralhas, uma primeira cintura de muralhas, erguidas em locais considerados mais sensíveis -, uma a leste do perímetro e outra no local onde, de acordo com os documentos, se julgava estar."

Os documentos em causa são sobretudo descrições - de geógrafos muçulmanos, nomeadamente - e registos (de transações e alugueres de casas), assim como alguma iconografia, já que a primeira planta cartográfica de Lisboa digna desse nome é de 1650. Quanto à descoberta na cidade material, é sobretudo "um jogo de puzzle mental". Ver a cidade medieval na Lisboa de hoje: "Um emaranhado de casas, algumas de cinco pisos, ruas apertadas e sinuosas, pisos poeirentos no Verão e enlameados no Inverno (as vias empedradas em Lisboa são bastante tardias), com palácios, muitas igrejas, alguns edifícios conventuais que se destacavam pela dimensão, com montes de lixo sobretudo junto às portas da cidade..." Uma cidade sem esgotos onde os dejectos eram lançados na rua (apesar de haver ordens em contrário) e onde a maioria das pessoas não teriam como prioridade tomar banho (apesar das estruturas criadas pelos mouros para as abluções diárias em Alfama, cujo nome virá exactamente de "nascente") - mesmo se, leal à sua paixão por uma época sempre associada à sujidade (no sentido material e espiritual), o historiador tenta desmistificar "a ideia de que durante uns séculos ninguém tomou banho". Uma cidade de cuja muralha velha escolhe um troço desaparecido: "O meu favorito é o da torre da Escrevaninha, que se situaria no quarteirão onde está hoje a igreja da da Conceição Velha (na rua da Alfândega). É o local onde uma das torres dos cruzados adossou à muralha, facto que foi decisivo para a rendição muçulmana." À falta dessa, escolhe ser fotografado noutro lugar de "combates intensos em 1147": a porta de ferro, no largo de Santo António da Sé, a tal que ainda não se descobriu. Só um pouco de imaginação, então: uma muralha, uma porta enorme revestida a ferro e os gritos e sons da batalha entre os cruzados invasores e os sitiados muçulmanos. E nós, resultado disso.


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