Estão em todo o lado: restaurantes, galerias, lojas de roupa e de ouro. Há comerciantes que não abdicam de os ter à porta. Acreditam que os ciganos fogem dos sapos como o diabo da cruz. Mas os mais novos fazem troça da superstição. Um empresário já foi repreendido e teve de retirar o adereço.
O mais pequeno espreguiça-se, o maior insinua-se galante, no seu colete vermelho. Num restaurante perto de Alcântara, em Lisboa, há um menu de sapos para todos os gostos. “Aquele que está deitado é alentejano. O da ponta comprei-o numa loja chinesa. Mas o meu preferido é o ‘Cocas’, faz-me lembrar o desenho animado” – conta o dono, apontando, vaidoso, a colecção de sapos que dispôs por cima do balcão.
Como quem mobila uma casa, o empresário foi comprando os sete exemplares de barro que saltam à vista. “Já pensei em electrificar o maior, pôr-lhe umas lâmpadas nos olhos para piscar à noite”, brinca. Mas porquê tantos sapos? Sempre que os clientes o interpelam, curiosos, ele repete um boato que há muito ouvia entre comerciantes: “Ouvi dizer que os ciganos não gostam de sapos, dá-lhes azar”.
Tudo começou há sete anos, quando um grupo de etnia cigana lhe bateu à porta para comemorar o ano novo. “À meia-noite entraram 16 e às sete da manhã estavam cá dentro 200. Tomaram conta da casa, tocaram órgão, sentaram-se em cima das mesas, sujaram tudo… O pior foi para receber. Começaram a fingir que batiam uns nos outros. A conta foi mais de mil euros, mas ainda me ficaram a dever 60 ou 70”.
Chamar a Polícia também não resolve o problema. “Não os podem obrigar a pagar. Identificam-nos e depois dizem-nos que temos seis meses para apresentar queixa”.
Foi então que decidiu experimentar uma receita mais caseira. Começou por espalhar os primeiros três anfíbios pela casa e notou logo que alguns clientes nunca mais voltaram. “É raríssimo virem. Mesmo que entrem, saem o mais depressa possível assim que os vêem. Ficam incomodados”. E exemplifica: “Dois ciganos, com mais de 50 anos, sentaram-se e pediram uma cerveja, mas mal repararam nos bichos disseram ‘ai, vamos embora que estão aqui ‘saltantes’ [termo usado pela comunidade]”, conta o empresário.
Há ciganos que recusam pronunciar a palavra
“Este animal está associado a rituais de bruxaria que aconteciam na Idade Média. E a crença foi passando de geração em geração”, explicou ao SOL a investigadora Mirna Montenegro, do Instituto das Comunidades Educativas, que estuda a cultura cigana há duas décadas. “Além da má sorte nos negócios”, acrescenta, “o sapo simboliza também ‘contrários’, isto é, conflitos entre famílias”.
Este assunto, reconhece a especialista, é de tal maneira “tabu” que muitos ciganos recusam pronunciar a palavra.
“Às vezes tenho dificuldade em falar da internet e usar a expressão ‘sapo.pt’. Só isso causa-lhes muita repulsa”, atesta Francisco Monteiro, director-executivo da Obra Nacional da Pastoral dos Ciganos.
Cientes disso, muitos comerciantes aferram-se a este objecto como se fosse um amuleto. “É muito mais eficaz gastar 20 euros em sapos do que cinco mil euros em sistemas de segurança”, defende a dona de uma ourivesaria, que colocou três sapos numa estante virada para a porta: “Já tive más experiências no passado e só quero proteger-me”.
Em Alvalade, um dos bairros residenciais mais calmos de Lisboa, há um punhado de estabelecimentos que, em vez da Polícia, preferem ter um sapo plantado à porta. “As mulheres costumavam entrar com os filhos, os miúdos metiam-se atrás dos balcões e roubavam os cintos. Elas tiravam as malas e punham-nas debaixo das saias. E enganavam-nos com os trocos”, desabafa a proprietária de uma loja, onde repousa um sapo discretamente colocado numa das montras, já depois de ter sido visitada pelos ‘amigos do alheio’.
“A minha mãe ofereceu-me este sapo quando abri o negócio”, conta a proprietária de outra loja, referindo-se a um dos quatro anfíbios estratégicamente colocados junto às estantes. O animal, que sorri e acena aos transeuntes, veio directamente da Polónia.
Ali perto, a dona de uma galeria de decoração também se rendeu à fama dos sapos depois de, em Outubro do ano passado, uma mulher de etnia cigana ter tentado levar uma das duas cadelas que são as “mascotes” da loja: “Se não fosse a dona da sapataria ao lado avisar-nos, tínhamos ficado sem ela”. Mas o novo amuleto parece não ter surtido efeito: “Eles continuam a vir para a porta e põem-se a chamar os cães. Há uns dias, entrou um senhor que nos queria vender óculos e perfumes”.
“Só os ciganos mais idosos, sem instrução e ostracizados é que alimentam esta crendice, à semelhança de muitos não-ciganos que vivem sobretudo no meio rural”, sublinha a investigadora Mirna Montenegro, apoiada por Bruno Gonçalves, cigano de 37 anos: “Os mais velhos, com mais de 60 anos, continuam a ter bem presente esta superstição, que nasceu do tempo em que as comunidades nómadas testemunharam feitiçarias. Mas as novas gerações já não acreditam e até brincam com o assunto”.
Cigano fez queixa contra dono de restaurante
Mesmo assim, Bruno Gonçalves, que é vice-presidente do Centro de Estudos Ciganos, considera “xenófobo e racista” o hábito de recorrer a objectos para inibir a entrada de pessoas em espaços públicos: “Por muito que me seja indiferente, isto deve ser denunciado”.
E, no ano passado, foi isso mesmo que fez. Apresentou queixa ao Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural (ACIDI) contra o dono de uma cervejaria de Coimbra onde existia um grande sapo de barro – o que deu origem a um processo de contra-ordenação inédito em Portugal.
Aos inspectores da ASAE, que instruiu o processo, Bruno contou que, a 17 de Janeiro de 2011, ele e alguns familiares entraram no estabelecimento depois de um velório. Nesse momento, foram abordados pelo proprietário, que quis saber se não lhes causava “impressão” estarem perto de um sapo, que usava “para afugentar ciganos maus”. Bruno pediu-lhe então que retirasse o objecto do estabelecimento, mas o homem “riu-se” e “não fez caso”. Um ano depois, ao perceber que o animal continuava no restaurante, Bruno avançou com uma queixa.
Comparando o sapo a outros objectos decorativos como um “porco” e um “galo de Barcelos” que tem no restaurante, o empresário alegou que nunca os usou para “discriminar” ninguém e que lhe interessa “manter” e não “afugentar” clientela. No entanto, o seu comportamento foi considerado “de índole racista” pela Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial, que evocou a lei do combate à discriminação. “Está em causa um tratamento desigual baseado na origem étnica e que põe em causa a dignidade das pessoas visadas, sendo humilhante para as mesmas”, lê-se na decisão do ACIDI, a que o SOL teve acesso.
Com base neste parecer, em Fevereiro deste ano, a alta comissária, Rosário Farmhouse, admoestou o empresário e, como sanção acessória, obrigou-o a retirar o sapo do restaurante. A alta comissária ressalva que é preciso avaliar caso a caso. “É necessário apurar em cada situação se há intuitos discriminatórios por trás da colocação dos sapos”.
“Podemos dizer que a lei anti-racismo em Portugal é bastante maleável. Com estas admoestações as pessoas vão continuar a prevaricar”, critica Bruno, que deixa o aviso a quem vende: “Não se pense que esse estratagema vai funcionar. A maioria de nós vai continuar a entrar. Comprar sapos só é bom para a economia nacional”.
fonte: Sol
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