terça-feira, 12 de julho de 2011

Debaixo de Orvieto, a cidade que tem um duplo


Orvieto é o Duomo e outras jóias medievais. Mas é também uma cidade que foi crescendo debaixo de terra ao longo de três mil anos, ao ponto de a sua rede de cavernas funcionar como uma labiríntica urbe paralela. A Fugas desceu às surpreendentes entranhas deste antigo bastião papal

Por cada casa construída em Orvieto há (no mínimo) uma gruta escavada por debaixo. É uma verdadeira cidade paralela, que se escalona no subsolo do casario erguido sobre uma meseta vulcânica, agora à beira da auto-estrada que liga Roma a Florença. Só tardiamente, porém, a Orvieto subterrânea chamou a atenção dos investigadores e hoje mesmo a parcela restaurada e aberta ao público é mínima. Mapeadas estão já cerca de mil dessas cavidades de produção humana, havendo muitas mais para descobrir e basta dizer que um quinto da cidade é ocupado por uma antiga base militar, aos pés da qual se ignora o que poderá haver.

A extensa rede de galerias e túneis, de qualquer modo, não é nem nunca foi um chamariz para os contingentes de turistas que diariamente fazem bicha à entrada do famoso Duomo de Orvieto. Bem mais raros são, na verdade, os que se aventuram nas entranhas da meseta urbanizada, fazendo da cidade das profundezas uma atracção ainda recente e pouco conhecida, envolta numa certa aura de estranheza e mistério. Conta-se, aliás, que há um par de décadas, numa época mais informal, os "orvietaninos" tinham o hábito de convidar os forasteiros a entrarem em suas casas, para os surpreender com o recheio dessas caves seculares. Hoje (todas?!) as visitas são organizadas e a edilidade tem o seu próprio circuito underground, também conhecido por Museo della Rupe. Arranca mesmo ao lado da catedral e, durante cerca de uma hora, põe os visitantes a deambular pela serpenteante rede de cavernas, na ponta da ladeira mais próxima.

A teia de cavidades foi esculpida ao longo de 3000 anos, tendo mais recentemente sido empregue como abrigo contra as bombas dos Aliados, na Segunda Grande Guerra. As entradas da meseta foram, no entanto, mais intensamente procuradas nas épocas de maior esplendor da cidade: primeiro quando se estabeleceu como um dos principais centros da rede de cidades etruscas da península e, depois, na Idade Média e no Renascimento, quando se tornou numa das cidades mais procuradas pelos Papas. O Museo della Rupe testemunha precisamente essas épocas de especial florescimento da cidade suspensa na ponta sudoeste da Úmbria. Ou seja, funciona também como modalidade alternativa de contar Orvieto a partir do seu subsolo.

Tudo debaixo de terra

Uma das etapas mais impressionantes da visita underground é um poço etrusco com perto de 45 metros de profundidade, um dos mais fundos de que há notícia. Os Etruscos souberam fixar-se no alto de um promontório quase inexpugnável, a meio da Península Itálica, mas não há vantagem que não traga prejuízo. Neste caso o azar deriva do solo formado por cinzas e tufo vulcânicos, um composto incapaz de reter a água da chuva. Em compensação é fácil de trabalhar e foi o que os Etruscos trataram de fazer, na circunstância desenhando um rectângulo de 1,20 metros por 80 cm e escavando nessa área tão fundo quanto o necessário para encontrar água. O sistema de ventilação então usado para os trabalhadores não sufocarem é um quebra-cabeças que já apaixonava Vitrúvio, o famoso arquitecto romano do primeiro século da nossa era, que acreditava que a circulação de ar nessas covas era assegurada por tubos metálicos.

O poço etrusco integrado no Museo della Rupe cruza a galeria de uma enorme pedreira subterrânea e foi descoberto nas vésperas do seu encerramento por razões de segurança, em 1822. A extracção de pedra, seja na forma de blocos talhados, empregues na construção, seja de pozzolano, uma espécie de cimento feito de cinzas, foi uma das actividades mais comuns no subsolo da Orvieto medieval. Nessa época a cidade viu a sua população crescer até aos 30 mil habitantes (quase o dobro da actual), concentração que forçou boa parte da sua actividade produtiva a deslocar-se para debaixo de terra. Testemunho dessa transferência são as duas grandes rodas em granito que agora se encontram logo à entrada do perímetro visitado. Eram parte de numa engrenagem destinada a prensar azeitonas a frio, numa espécie de lagar subterrâneo (debaixo de terra a temperatura é mais estável e portanto mais indicada para a produção e conservação do azeite). A actividade medieval mais surpreendente da Orvieto subterrânea é, no entanto, testemunhada meia dezena de metros mais abaixo, num conjunto de galerias com nichos regularmente escavados, como se fossem estantes de uma enorme biblioteca esculpida na pedra. São na verdade gaiolas de pombos, que os senhores medievais faziam construir para assegurarem o abastecimento de carne fresca (só comiam aves recém-nascidas, por serem mais tenrinhas), nas épocas por vezes longas em que a cidade se encontrava sitiada. As "janelas" (melhor será dizer, buracos feitos nas paredes exteriores das galerias) abertas para os pombos e, portanto, os próprios pombais foram mandados fechar nos inícios do século XVII pelo Papa Urbano VIII, quando foi alertado para o fluxo de "penetras", que por essa via entravam na cidade sem pagar o tributo da praxe.

A vertigem dos poços

Cem anos antes, ao fechar do pano do Renascimento, o Papa Clemente VII mandou construir a cova artificial que ainda hoje é a mais espectacular de Orvieto. Na ressaca do brutal Saque de Roma provocado por Carlos V, Imperador do Sacro Império Romano-Germânico, em 1527, Clemente VII refugiou-se em Orvieto onde, receando que as reservas de águas resultassem insuficientes para abastecer as suas tropas em caso de cerco prolongado, mandou construir um poço capaz de atingir uma fonte, situada já por baixo da Rocha de Orvieto.

O arquitecto florentino António Sangallo desenhou para o efeito um amplo cilindro de 57,13 metros de fundo por 13,40 metros de diâmetro, iluminado por 70 janelas e flanqueado por duas escadarias em caracol, cada qual com 248 degraus. Uma das escadarias servia para os animais de carga descerem, a outra para eles subirem, as duas nunca se encontrando de modo a assegurar a fluidez da circulação em ambos os sentidos.

Semelhante a uma de Torre de Babel invertida, é o género de obra que ainda hoje provoca vertigens e arrepios. Sensações que terão inspirado a designação de Poço de São Patrício, associada às lendas medievais sobre o Purgatório de São Patrício na Irlanda, segundo as quais essa gruta da Station Island teria sido identificada como entrada para o inferno por Deus mesmo. Clemente VII não estava, porém, a construir para impressionar, mas a actualizar um método de captação de água conhecido desde a Antiguidade e ele sabia-o, uma vez que a sua primeira tentativa nesse sentido foi ampliar um velho poço etrusco, no perímetro medieval da cidade.

Chama-se Pozzo della Cava e foi descoberto há 30 anos em obras efectuadas na cave pela família que, ainda hoje, habita a casa construída por cima. O poço esculpido pelos Etruscos é mais grosseiro e estreito (primeiro tem um diâmetro de 3,40 metros, depois a meio afunila para um rectângulo de 60 por 80 cm) que o seu substituto renascentista encomendado por Clemente VII. Mesmo assim exibe 36 metros de profundidade e contracena com outras atracções subterrâneas, incluindo uma cisterna e um par de túmulos etruscos, alternando com infra-estruturas medievais tais que um forno e mesmo uma lixeira escavada a uns bons 20 metros abaixo do solo.

O Poço da Cave também inclui um anexo usado para fabricar vinho, tema que pode ser mais bem explorado visitando o antigo mosteiro de San Giovanni, hoje também conhecido por Palazzo del Gusto. Além de sede internacional da CittàSlow (www.cittaslow.net, equivalente em termos de turismo urbano ao conceito de slow food), funciona como Enoteca da região uma das mais prestigiadas manchas vitivinícolas de Itália, da qual representa centena e meia de produtores. As caves em vários níveis remontam à época dos Etruscos, provando que no subsolo deste velho mosteiro se fabricam e armazenam vinhos há 3000 anos.

O problema da água, no entanto, só ficou definitivamente resolvido em meados do século XIX com o estabelecimento de um reservatório de água no ponto mais alto de Orvieto, a Torre del Moro, que data de finais do século XIII. Por cima do reservatório instalaram um relógio mecânico e sinos, pelos quais hoje se passa a caminho do torreão, que oferece vistas a 360 graus sobre a cidade e as vizinhanças. Depois do mergulho nas profundidades, esta visão em plano picado tem tanto de esclarecedor como de revigorante.

A catedral do Juízo Final

O Duomo é de tal modo espectacular que acaba por ofuscar as demais atracções de Orvieto. Começa pela majestosa fachada que alterna mármore travertino e basalto esverdeado, na mesma medida em articula todo o reportório formal do Gótico, época da sua primeira edificação. Tem óbvias semelhanças com a Catedral de Siena, de onde veio Lorenzo Maitani, o arquitecto com uma intervenção mais marcante na construção do edifício, desde 1308 até à sua morte, em 1330.

Foi Maitani quem estabilizou a fachada, ao mesmo tempo que a forrou com uma sequência de painéis em calcário uma fantástica banda desenhada, cunhada na pedra, que hoje está protegida por vidro tipo Plexiglas. Começa no Génesis (Eva é representada a sair de uma costela de Adão) até ao Juízo Final (um batalhão de serpentes justifica a expressão de horror estampada nos rostos dos condenados). Embora toda a literatura promocional coloque o acento na chancela medieval da catedral, a verdade é que o deslumbramento que produz é em boa parte função de acrescentos posteriores: os azulejos dourados que brilham feericamente ao sol do fim do dia foram adicionados entre os século XVII e XIX, enquanto os colossais portões em bronze com figuras femininas foram esculpidos pelo napolitano Emílio Greco em 1970.

Há tanta coisa para ver na fachada, que o visitante não hesita em comprar bilhete para saber que outras delícias o esperam no interior mas também há uma porta lateral para o culto, que dá acesso aos mesmos espaços e, portanto, dispensa o gasto. A surpresa, porém, é que lá dentro é o despojamento total, pelo menos até ao transepto. Não é que fosse sempre assim, antes pelo contrário, a catedral foi coleccionando obras de vulto de pintura e escultura logo desde a campanha da Contra-Reforma. Mas no século XIX acharam que era barroquismo a mais e mandaram tudo fora, ou melhor, o recheio do Duomo foi disseminado por outros espaços seculares, entretanto convertidos em museus. O bilhete de entrada na catedral dá acesso a esses museus e pelo menos o da antiga igreja românica de Santo Agostinho é imperdível pelas soberbas esculturas de Francesco Mochi (1580-1654), nomeadamente a sua enigmática Anunciação.

De regresso à catedral, o interior na maior parte esquelético dá lugar à mais triunfal exuberância nas capelas também construídas sob a batuta de Maitani, uma de cada lado do transepto. Ambas as capelas e o altar estão cobertas de frescos, mas é na da direita, chamada de San Brizio, que se encontra uma das maravilhas do Renascimento Italiano, o Juízo Final (1499) de Luca Signorelli. Impressiona o exímio detalhe dos corpos, na maior parte desnudos e em poses dramáticas, a sua extraordinária luminosidade que lhes confere um semblante quase tridimensional (incluindo a amante infiel do pintor, naturalmente lançada ao Inferno) e a inquietante presença do Anticristo que sussurra vá-se lá saber o quê a Jesus Cristo. O fulgor criativo, o despudor moral e a inquietude existencial fazem deste Juízo Final um marco na história da arte, chegando a ser considerado superior à Capela Sistina de Miguel Ângelo, pintada 35 anos depois e seguramente nele inspirada.

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