A Última Ceia foi pintada no refeitório de um convento em Milão
Para o escritor Ross King, é bem provável que sejam do mestre as feições do apóstolo Tomé. Mas Tiago também é parecido.
Quando se trata de Leonardo da Vinci, o filão de mistérios, hipóteses e polémicas parece não ter fim. Dezenas de historiadores vivem fascinados pela obra e pela vida deste pintor, escultor e cientista que simboliza como nenhum outro o ideal do Renascimento. Não é por isso de estranhar que sejam frequentes as novas teorias sobre as obras de Leonardo (1452-1519) e os terramotos mediáticos sempre que uma das suas pinturas desaparece ou é restaurada.
Desta vez a agitação vem do meio editorial e deve-se a uma nova teoria do escritor canadiano Ross King, que nos últimos anos se tem dedicado a temas históricos, sendo autor de best-sellers como Brunelleschi's Dome e Michelangelo and the Pope's Ceiling. King, que está prestes a lançar o seu último livro, Leonardo and The Last Supper (Bloomsbury Publishing), defende agora que é bem provável que o pintor se tenha representado duas vezes numa das suas obras mais icónicas, A Última Ceia (1495-1497), um fresco feito para o refeitório do convento dominicano de Santa Maria delle Grazie, em Milão.
Numa delas é São Tomé, o apóstolo que duvida para crer, sentado à esquerda de Jesus, com a mão e o dedo indicador levantados, um gesto que se tornou uma das imagens de marca do pintor. Na outra é São Tiago Menor, o segundo dos apóstolos a contar da esquerda, com os cabelos compridos alourados e o nariz longo, mas delicado. Será possível? Dois auto-retratos numa só obra?
O amigo poeta
Ross King não tem certezas, mas baseia a sua hipótese em vários factores. Os dois apóstolos, explicou ao jornal britânico The Independent, parecem ter tido o mesmo modelo e algumas das suas características – o nariz grego, os cabelos caídos sobre os ombros no caso de São Tiago e a barba em São Tomé, algo pouco comum nos italianos do século XV – parecem evocar o retrato a giz vermelho da Biblioteca de Turim que nos mostra um Leonardo já velho. Este último argumento é estranho, já que no mesmo livro que deverá chegar às livrarias a 30 de Agosto o escritor defende ainda que este desenho, há muito identificado como um auto-retrato, será contemporâneo de A Última Ceia (anos 1490), o que faz com que dificilmente tenha saído das mãos do mestre, já que é difícil acreditar que, aos 43 anos, Leonardo se representasse como um ancião (mesmo se a esperança de vida na época era bem mais baixa).
Mas para King não são as semelhanças físicas que dão consistência à hipótese. Afinal, admite, ninguém sabe ao certo como seria Leonardo em novo e é este mistério que faz com que muitos especialistas e curiosos o procurem em muitas das suas obras. O canadiano prefere ancorar a sua teoria num poema contemporâneo de Leonardo, escrito por um dos seus amigos, Gaspare Visconti, que, tal como o pintor de Mona Lisa ou de Dama com Arminho, fazia parte do talentoso núcleo de artistas da corte milanesa de Ludovico Sforza. "Visconti e Da Vinci eram amigos, conheciam-se bastante bem", disse King ao diário espanhol El País, referindo-se aos versos em que o poeta ironiza sobre um artista (nunca o nomeia) que tem o hábito de se auto-retratar nas suas obras, emprestando os seus gestos, a sua postura, às personagens que representa. "Esta brincadeira [de Visconti] só faria sentido – e só poderia ser compreendida - se se referisse a um pintor muito conhecido", acrescenta o escritor.
O que teria levado o mestre a incluir-se nesta obra? Porquê Tomé e Tiago? Quanto a Tiago, King não tem pistas, mas para a escolha de Tomé tem resposta pronta: "Se Leonardo tivesse de escolher um personagem, seria certamente Tomé, já que é o apóstolo que duvida de tudo".
Em Leonardo and The Last Supper, lê-se na página oficial do escritor na Internet, King explica até que ponto podemos olhar para o fresco do refeitório dos dominicanos como uma obra-prima e, ao mesmo tempo, como documento histórico, com dados importantes sobre Leonardo e sobre a Milão dos Sforza. Neste novo livro, o autor fala ainda das dificuldades que o mestre terá sentido nesta pintura mural (o fresco não era técnica que dominasse), nos riscos que a obra correu com os bombardeamentos aliados na Segunda Guerra e nas polémicas que envolveram os seus 22 anos de trabalhos de restauro. Há tempo ainda para contar pequenas histórias que envolvem a linguagem corporal dos apóstolos e as enguias servidas naquela última vez em que Cristo se sentou à mesa."A Última Ceia é a única obra em que ninguém – excêntrico ou académico – tentou identificar um retrato de Leonardo", sublinhou Ross ao Independent. Para o escritor, é natural que o mestre se tenha representado em algumas das suas pinturas. Afinal, Miguel Ângelo transformou-se num dos condenados no tecto da Capela Sistina, Rafael está no seu fresco A Escola de Atenas, Andrea Mantegna surge timidamente em A Apresentação no Templo, e Diego Velázquez não resiste a aparecer em As meninas.
fonte: Público
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