sábado, 20 de outubro de 2012

A baía de Angra é um laboratório de arqueologia e cada mergulho conta

Por regra, a equipa passa seis horas por dia no mar, com mergulhos de duas horas para cada arqueólogo.

Por regra, a equipa passa seis horas por dia no mar, com mergulhos de duas horas para cada arqueólogo

Os arqueólogos trabalharam este Verão nos destroços de um navio que pode ter 400 anos. Será do País Basco? Será que vinha das Caraíbas? Este é o primeiro barco escavado nos Açores em contexto de investigação.

Com o mau tempo, a baía de Angra do Heroísmo pode ser uma armadilha. Os piores ventos vêm de sul e trazem ondas grandes. Ali a maioria dos naufrágios aconteceu com as embarcações já fundeadas. "Aquilo podia ser traiçoeiro - os navios entravam e depois já não conseguiam sair. O que vale é que, perto de terra, quase tudo se salvava", diz o arqueólogo José Bettencourt, que já tem muitas horas de mergulho na Terceira, a ilha açoriana onde trabalha de forma mais sistemática desde 2006.

Bettencourt e a sua equipa, a única de arqueologia náutica activa nos Açores, estiveram em Angra a escavar todo o Verão e pelo segundo ano consecutivo, integrados num projecto da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), dirigido pelo historiador José Damião Rodrigues, investigador do Centro de História de Além-Mar e da Universidade dos Açores. 

O trabalho, que em grande parte é financiado pela FCT (100 mil euros a três anos) e que em 2013 se dedicará sobretudo à escavação exaustiva das partes do navio postas a descoberto na campanha deste ano, envolve uma embarcação que deverá ser de meados do século XVI e tem objectivos ambiciosos. "Queremos reunir o máximo de informação possível sobre a construção naval, as rotas atlânticas, o papel de Angra nestas rotas e sobre a vida a bordo", explica José Bettencourt, que tem um doutoramento em curso centrado no património subaquático da baía. "Depois, com essa informação, gostávamos de fazer uma reconstrução virtual do navio, perceber como funcionava e inseri-lo no seu contexto histórico." Sem esquecer, garante, as propostas de valorização turística deste património que a água esconde.

"Cada vez que mergulhamos na baía de Angra encontramos coisas novas. Se estivesse rigorosamente mapeada, tenho a certeza de que passaríamos rapidamente dos dez naufrágios identificados para os 40 ou 50." A carta arqueológica da Terceira, feita pela Direcção Regional de Cultura dos Açores, que em meados da década de 1990 fez importantes trabalhos na baía de Angra, com o Centro Nacional de Arqueologia Náutica e Subaquática e com o Institute of Nautical Archaeology, está longe de ser exaustiva, o que é, aliás, natural neste tipo de património.

Cada destroço da baía tem uma letra. A equipa de Bettencourt, que neste Verão teve oito elementos, está a escavar no Angra B e, depois de dois anos de campanhas a cinco metros de profundidade, são ainda poucas as certezas. "O que podemos dizer é muito pouco", reconhece, embora os dados recolhidos, ainda que falte o estudo exaustivo dos materiais e mais uns meses debaixo de água, lhe permitam já levantar algumas hipóteses. "É provavelmente uma embarcação espanhola, que fazia as rotas oceânicas... Ainda nos é impossível dizer que tamanho tinha - talvez entre 200 e 300 toneladas - ou de que tipo seria."

Em risco

A escavação, precisa o arqueólogo de 34 anos, foi feita apenas porque os vestígios do Angra B corriam o risco de se degradar sem que os especialistas pudessem estudá-los. "Este navio foi completamente saqueado na altura do naufrágio. A população recuperou tudo, da carga à artilharia." Assim sendo, o que podemos ainda aprender sobre este barco naufragado há 400 anos? "Muita coisa. Este é o primeiro navio a ser escavado em ambiente de investigação nos Açores, e não para minimizar impactos de obras. É um laboratório."

A ser espanhola, a embarcação poderá ter feito parte da frota conhecida como Carreira das Índias (não confundir com a Carreira da Índia, que ligava Lisboa a Goa) e da chamada Rota da Prata, ponte entre Castela e a sua fatia das Américas. "Pode ser de construção basca", diz Bettencourt. "Mas o império castelhano tinha também na Cantábria um dos seus principais estaleiros navais. Naquela zona da península a abundância de ferro e madeira e a proximidade do mar facilitavam a construção de navios." Além disso, acrescenta, as cerâmicas já recuperadas são espanholas e não há nada de materiais africanos ou asiáticos. A possibilidade de fazer parte de uma rota atlântica, e de ter vindo, por exemplo, das Caraíbas, é reforçada pelo facto de, no lastro do navio - pedras que eram colocadas no fundo para o equilibrar - terem sido encontrados pedaços de coral. "Outra coisa que reforça esta teoria é que o navio era todo forrado a chumbo, protecção da madeira que se usava naquela época em embarcações destinadas a águas quentes como as do mar das Caraíbas."

Agora Bettencourt e os outros investigadores vão estudar os materiais e monitorizar os vestígios submersos durante o Inverno. Para o ano voltam às águas da baía com o seu grande aspirador, as caixas de plástico para os materiais e a rotina de mergulhos diários de duas horas para cada arqueólogo. Seis horas no mar por regra, 12 sempre que a meteorologia previr ventos de sul para os dias seguintes. Com ondas grandes.

fonte: Público

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