segunda-feira, 23 de maio de 2016

Da Península Ibérica para a Europa. Genética desvenda revolução cultural


Projeto coordenado pela Universidade do Minho vai fazer análise genética das populações em Portugal, Espanha e Reino Unido, e também de ossadas antigas. Vai permitir perceber as migrações de há cinco mil anos

O cenário é o da região de Lisboa, e o tempo, o de há quase cinco mil anos. Foi a partir daqui, desta zona fértil da Península Ibérica, que então floresceu e se difundiu pela Europa Ocidental uma revolução social e cultural que tem nos recipientes cerâmicos campaniformes - de formato bojudo na base, mais abertos no topo - o seu ícone. Mas há muito que não se sabe sobre esse "movimento" campaniforme. Por exemplo, não é 100% garantido, mas tudo indica que foi na zona de Lisboa e na Estremadura que ele se iniciou, mas porquê? E como alastrou à Europa Ocidental? Através de grandes deslocações migratórias ou, pelo contrário, à boleia de pequenos fluxos, por dentro das redes familiares? As respostas, ou parte delas pelo menos, poderão chegar em breve com a ajuda da genética e de um projeto de investigação liderado pela Universidade do Minho.

"Dentro de um ano esperamos publicar os primeiros resultados, ou com os dados da amostragem genética da atual população da Península Ibérica ou com os resultados das análises genéticas das ossadas humanas da época, que também vamos estudar. Depende do que avançar primeiro", explica o geneticista Pedro Soares, investigador do Centro de Biologia Molecular e Ambiental da Universidade do Minho e coordenador do projeto, que é financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) e que está agora a arrancar.

Na prática, o estudo vai ter essas duas vertentes. Por um lado, fará a caracterização genética global da população da Península Ibérica, com um grau de resolução inédito e muito mais preciso do que aquele que existe neste momento. Por outro, realizará também o estudo genético de ossadas humanas, com cerca 4800 a 5000 anos, encontradas em várias zonas da Europa Ocidental. Muitas serão daqui mesmo, de Portugal, da região do Alentejo. A ideia, depois, é comparar esses dados genéticos, e daí extrair a informação sobre os fluxos migratórios na época, para responder a algumas das questões em aberto.

Para fazer o atual retrato genético da população ibérica, a equipa pretende recolher "milhares de amostras de todas as regiões de Portugal e de Espanha", precisa Pedro Soares. O objetivo é sequenciar todo o ADN (informação genética) mitocondrial (da estrutura celular chamada mitocôndria), que só passa à descendência por via materna e que por isso mesmo permite traçar essa linhagem, até às mães ancestrais, de há cinco milénios. O estudo dos fósseis humanos da época centra-se igualmente na sequenciação do ADN mitocondrial, para garantir a possibilidade de comparação.

No Reino Unido será feita uma amostragem idêntica - para a população e para eventuais ossadas - pelo parceiro local do projeto, o especialista em genética de populações Martin Richards, da Universidade de Huddersfield, com quem Pedro Soares se doutorou e com quem continua a colaborar.

Isso completará o conjunto de dados, para permitir mais comparações, e assim caracterizar com maior detalhe a verdadeira dimensão dos fluxos migratórios que, no final do III milénio a.C., difundiram a cultura campaniforme, as suas técnicas inovadores e a sua nova complexidade social, em que uma elite incipiente começava a destacar-se. "Essa é uma das grandes questões que temos entre mãos, a de caracterizar a real dimensão desses fluxos migratórios", admite Pedro Soares.

Não há uma história especial na génese deste projeto. A genética de populações é a especialidade de Pedro Soares, que estudou Biologia na Universidade do Porto e se doutorou depois nesta área, em Leeds, no Reino Unido, sob a orientação de Martin Richards, então professor e investigador na universidade dessa cidade.

A colaboração entre ambos não mais parou. Foi, aliás, integrado na equipa Martin Richards que o jovem investigador português, agora com 35 anos, se tornou coautor de um modelo que estabeleceu uma nova datação para a dispersão do Homo sapiens pelo planeta, a partir de África.

Os seus trabalhos, publicados nas revistas científicas Molecular Biology and Evolution e PNAS, em 2005 e em 2013, mostram que esse "out of Africa" aconteceu alguns milhares de anos mais cedo do que se pensava até então, há pelo menos 60 mil anos, primeiro em direção ao Sudeste Asiático, com uma possível ramificação desse fluxo a caminhar para a Europa.

"Em conversas com arqueólogos, interessei-me por esta questão da cultura campaniforme e então decidimos avançar", conta Pedro Soares.

Colaborador do projeto, o arqueólogo António Carlos Valera, da Universidade do Algarve e coordenador do núcleo de investigação da empresa de arqueologia ERA, estuda há duas décadas o sítio arqueológico de Perdigões, perto de Reguengos de Monsaraz, que é, justamente, uma das heranças mais completas e bem preservadas desse passado campaniforme no território português.

"Temos aqui muitos restos humanos bem preservados que vamos incluir no estudo genético", explica António Valera, sublinhando que aquele era "um local para onde convergiam na época pessoas oriundas de sítios distantes".

Essa diversidade, que acaba por ter vantagens para o estudo genético, vê-se no tipo de materiais que têm sido ali encontrados, como dentes de elefante que chegavam através do Norte de África, ou cerâmicas da zona de Lisboa.

"Estamos envolvidos num outro projeto, também financiado pela FCT, para estudar a mobilidade humana com base na análise dos estrôncios [elemento químico) nos materiais e achámos que era importante participar também neste estudo genético, porque isso vai enriquecer os nossos dados", sublinha o arqueólogo.

Isso permitirá em breve responder às questões centrais com que os arqueólogos se debatem há várias décadas sobre o porquê e o como da revolução campaniforme de há cinco mil anos. Vem aí uma nova visão, mais rica em detalhes e mais próxima do real, desse passado.


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