A investigadora belga Vanessa Charland-Verville ADRIANO MIRANDA
Vanessa Charland-Verville é neuropsicóloga no grupo de Ciência do Coma e no Departamento de Neurologia do Hospital Universitário de Liège, na Bélgica. Neste momento, estuda o que se passa no cérebro das pessoas que vivem experiências de quase-morte.
Em 2010, a vida de Rom Houben entrou nas notícias. Este belga foi diagnosticado com síndrome do encarceramento. Isto é, apesar de paralisado, o doente esteve sempre consciente e começou aí um processo de recuperação que lhe permitiu voltar a comunicar com médicos e família. Esteve num hospital durante 23 anos, depois de um acidente que o tinha colocado no que se supunha ser um estado vegetativo. A partir daí, começou um processo de recuperação que lhe permitiu voltar a comunicar com médicos e família.
Vanessa Charland-Verville esteve no Porto, no âmbito do 10.º Simpósio da Fundação Bial Aquém e Além do Cérebro, que termina este sábado, na Casa do Médico, falando sobre casos de lesões cerebrais como este. Ao PÚBLICO conta também a sua experiência numa nova área de estudo na sua universidade, as experiências de quase-morte.
Fez parte da equipa que estudou a recuperação de Rom Houben, que esteve em estado de coma durante 23 anos.
Ele não esteve em coma. Os media têm-no dito assim, mas, por definição, não se pode estar em coma por mais de algumas semanas. Rom Houben foi mal diagnosticado, como outros doentes que vimos em Liège. Quando um doente não mostra movimentos, mesmo que esteja consciente, às vezes pode concluir-se erradamente que não está consciente e, infelizmente, isto acontece demasiadas vezes. São os casos de locked-in syndrome [síndrome do encarceramento]. Rom Houben estava completamente paralisado desde que tinha tido um acidente e, portanto, não podia dizer aos médicos que estava consciente.
Qual foi o processo que fez com que os médicos se apercebessem de que ele não estava num estado vegetativo?
Uma TAC feita pelo professor Steven Laureys [chefe da equipa de que faz parte Vanessa Charland-Verville] mostrou que o cérebro estava normal. Foi uma grande surpresa, mas o cérebro estava a comportar-se como um cérebro normal e consciente. É muito importante ter estas técnicas ao nosso dispor, mas infelizmente nem todos os locais têm acesso à ressonância magnética ou à TAC e fazem erros de diagnóstico com frequência. Com estes doentes, temos de estar certos acerca do diagnóstico. Depois fazemos exames comportamentais e temos as técnicas de neuro-imagem.
Como está Rom Houben neste momento?
Não nos encontramos regularmente, mas a família está a tentar trabalhar num dispositivo de comunicação em que ele escreve alguma coisa num teclado especial e comunica através de um computador. Está a fazer reabilitação física, mas o objectivo principal é tentar comunicar com a família.
Ele tenta comunicar com a família de uma forma diferente daquela com que comunicou com os médicos?
Depois de tantos anos sem poder falar ou mexer-se, a prioridade é ter um dispositivo que ajude a falar para tornar esse processo mais fácil.
Este tipo de descobertas coloca dilemas éticos. Estando na Bélgica, um país onde a questão da eutanásia é muito discutida, têm sido chamados para este debate?
Somos confrontados com estas questões algumas vezes. Depois de algum tempo em estado vegetativo, o cérebro começa a degenerar-se. Vemos alguns doentes em Liège para fazer um diagnóstico e depois falamos com as famílias, explicando isto e dizendo como está o cérebro da pessoa em causa. Depois de muitos anos inconsciente, o cérebro morre.
Mas já intervieram em algum processo que terminou com eutanásia?
É parte do nosso trabalho fazer estas questões e lidar com este tema. Mas, nos três anos que levo em Liège, nunca fomos confrontados com nenhum caso em que o doente tenha acabado por morrer por decisão da família.
Tem estado também a trabalhar em experiências de quase-morte. Como neuropsicóloga, qual é o seu papel no estudo destes casos?
Procuramos sempre a correlação entre a lesão cerebral e o comportamento. Faço duas coisas: tenho um trabalho clínico, onde trabalho com doentes com perturbações na consciência, que estão em coma ou num estado vegetativo. Mas também faço investigação. Faço uma avaliação neuropsicológica das funções cognitivas depois de uma paragem cardíaca. Sabemos que o tempo em que o cérebro não recebe oxigénio pode causar problemas de memória. Acedemos às funções cognitivas, mas também pergunto aos doentes se têm algumas memórias do período em coma ou do tempo em que estiveram no hospital. Entre 10 e 20% dos doentes reportam este tipo de memórias.
As memórias que os doentes contam são sempre similares?
Quando têm experiências de quase-morte, isso torna-se claro porque contam uma história que é bastante similar. São sempre questões similares: sentimentos de paz, sair do próprio corpo, estar num lugar onde nunca estiveram, ver uma luz brilhante.
Podemos comparar este tipo de memórias com outras percepções, como sonhos ou alucinações?
No ano passado, publicámos um artigo onde demonstrámos a diferença entre as experiências de quase-morte e as memórias imaginadas, como os sonhos. As memórias imaginadas são sempre intenções que não foram cumpridas e, quando as comparamos com memórias de eventos reais, vemos que as experiências de quase-morte são mais intensas em termos de percepções e conteúdo emocional. Os doentes dizem que é mais real do que o que é real. Baseando-nos nesse estudo, podemos dizer que estas experiências não são como as memórias imaginadas, porque o conteúdo é realmente muito mais intenso.
Também testam os doentes com tecnologia hospitalar?
É impossível aceder a experiências de quase-morte em tempo real. Podemos apenas avaliar a função cerebral ou as memórias depois do evento. O que estamos a tentar fazer agora é induzir experiências de quase-morte através de hipnose e recriar a experiência para ver o que o cérebro nos pode dizer sobre este fenómeno.
Este assunto está presente na cultura popular, fora da comunidade científica...
Há outras audiências interessadas no assunto. Mas acho que as experiências de quase-morte precisam de ser agora estudadas minuciosamente e com seriedade. Há pessoas que têm escrito livros dizendo o que lhes apetece sobre isto e agora temos de saber mais acerca das características das experiências de quase-morte e por que há pessoas que contam as mesmas coisas e o que está a acontecer no cérebro nesse momento. Temos que ser rigorosos acerca desse fenómeno.
fonte: Público