Molar de mastodonte americano que está no Museu Nacional de História Natural de Paris Museu Nacional de História Natural de Paris
Molar de mastodonte americano que está no Museu Nacional de História Natural de Paris. A superfície dos molares de mastodonte tem a forma de uma série de "maminhas", daí o nome dado a estes animais pelo naturalista francês Georges Cuvier. A superfície dos molares de mastodonte tem a forma de uma série de "maminhas", daí o nome dado a estes animais pelo naturalista francês Georges Cuvier
São quase 80 gavetas cheias de dentes de leite, molares, pré-molares, porções de mandíbula, fragmentos de dedos. Os ossos fossilizados pertenceram a mastodontes e foram sendo desenterrados e guardados à medida que Lisboa foi sendo urbanizada. "Tenho a impressão de que Lisboa foi construída sobre uma jazida paleontológica imensa, vertiginosa, diz-nos o paleontólogo Pascal Tassy, responsável pela conservação da colecção de mamíferos fósseis no Museu Nacional de História Natural de Paris.
Pascal Tassy esteve em Lisboa na semana passada para realizar uma primeira vistoria desta colecção de fósseis de mastodontes que dorme nas gavetas do Museu Nacional de História Natural, no centro histórico lisboeta - e que foi poupada pelo incêndio de 1979 que destruiu, nomeadamente, as colecções de zoologia. Aqui, os ossos provêm dos sedimentos arenosos da bacia de Lisboa, mistura de aluviões do estuário do Tejo e de material marinho que foi sendo depositado, ao longo dos tempos geológicos, aquando das incursões do mar nas terras. Não admira portanto nada que, à mistura com os fósseis daqueles grandes mamíferos já extintos, também haja, por exemplo, vértebras de peixe, faz notar Tassy.
Aproveitando a sua visita a Lisboa, este especialista mundial de mastodontes falou com o PÚBLICO da razão principal da sua vinda cá: tentar determinar a que espécies pertenciam os mastodontes que viviam nestas paragens há milhões de anos.
A evolução dos mastodontes, explica, é um autêntico puzzle. Porquê? Porque os fósseis mais frequentes são de molares e que, como o crescimento desses dentes acontecia em contínuo ao longo da vida dos animais, várias "idades" dentárias podem coexistir numa mesma mandíbula, o que obviamente não simplifica a classificação dos espécimes.
Antes de mais, convém desfazer alguns mal-entendidos a propósito dos mastodontes. Primeiro, quanto ao seu nome, relacionado com o facto de a superfície dos molares destes animais ter a forma de uma série de "maminhas". Cunhado pelo grande naturalista francês Georges Cuvier em 1806, o nome "mastodonte" combina justamente as palavras gregasmastos (mama) e odontos (dente). Ou seja, não tem nada a ver com o significado figurado hoje o mais usual da palavra: gigante, corpulento.
Segundo esclarecimento: os mastodontes (apesar de pertencerem à família dos mamutídeos) não são mamutes. Os mamutes, esses, são elefantes (família dos elefantídeos) extintos há uns 12 mil anos na Europa, enquanto os mastodontes desapareceram do velho continente há um a dois milhões de anos. Do ponto de vista da evolução, encontram-se portanto em ramos afastados da árvore dos proboscídeos, que são os animais possuidores de uma tromba.
Tassy acredita que a colecção de Lisboa vai ajudar a classificar as diversas espécies de mastodontes. "Actualmente, os especialistas pensam, conforme os casos, que há 17 a 20 milhões de anos existiam uma a seis espécies de mastodontes", explica, "mas a minha convicção é a de que existiam cá três espécies e que duas delas eram muito diferentes uma da outra". Houve ainda uma quarta espécie de mastodonte europeu, frisa, mas nunca ultrapassou os Pirenéus para chegar à Península Ibérica.
Nesta sua primeira visita à colecção, Pascal Tassy, capaz de distinguir certas características dos dentes à vista desarmada, já reparou nalgumas delas nos fósseis que o deverão fazer voltar para o ano para um estudo mais aprofundado. "O desafio da colecção do museu de Lisboa será identificar as espécies presentes segundo os critérios actuais", acrescenta. "E isso vai alterar os nomes, as definições das espécies e talvez mesmo as distribuições geográficas à escala europeia."
O elefante do rei de Portugal
Uma das razões que levaram Pascal Tassy a interessar-se por estes grandes mamíferos de outrora foi o facto de o "nascimento da paleontologia estar intimamente ligado aos elefantes e sobretudo aos mastodontes", como explicou ainda durante uma conferência no Instituto Francês de Portugal em Lisboa. E contou assim mais uma história que liga Portugal aos primórdios da ciência da história da vida na Terra. Acontece que, no século XVII, D. Pedro II (então regente de Portugal) ofereceu ao rei de França, Luís XIV, uma fêmea de elefante (viva). Ora, décadas mais tarde, esse mesmo paquiderme, que morrera em 1681 e cujo esqueleto faz ainda hoje parte da colecção parisiense tutelada por Pascal Tassy, tornar-se-ia na primeira base do estudo anatómico comparativo dos fósseis de ossos de mastodonte então descobertos nos Estados Unidos. Em particular, isso levou um outro grande naturalista francês, o conde de Buffon, a introduzir em 1778 o conceito absolutamente novo de espécie extinta, ou "perdida", e Cuvier a trabalhar, em 1795, sobre "as espécies de elefantes actuais e extintas". Todavia, salienta Tassy, Cuvier não chegou a interpretar a relação entre a geologia e a biologia, chave fundadora da paleontologia. Para ele, a vida na Terra resumia-se a uma série de catástrofes que teriam dado, de cada vez, lugar a nova fauna e nova flora - fenómenos descontínuos que tinham permanecido "presos" nas camadas de sedimentos geológicos. Mas só Charles Darwin, em meados do século XIX, é que conseguiria "reunir as descontinuidades biológicas e geológicas", diz Tassy, para dar origem à visão moderna da evolução da vida na Terra.
fonte: Público
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