"Não sei o que fizemos de errado", disse-me a doente no meu gabinete de psiquiatria. Era uma mulher inteligente e que sabia expressar-se, com pouco mais de 40 anos, que me procurou com queixas de depressão e ansiedade. Ao discutir as pressões que enfrentava tornou-se claro que o filho adolescente era, há muitos anos, a mais importante.
Em miúdo, explicou, lutava muitas vezes com outras crianças, tinha poucos amigos íntimos e a reputação de mau. Ela esperara sempre que ele mudasse, mas na altura ele estava quase com 17 anos e ela sentia-se cada vez mais abatida.
Perguntei-lhe o que queria dizer com "mau". "Detesto admiti-lo, mas ele é cruel e não tem compaixão pelos outros", respondeu. Em casa era provocador e mal-educado, muitas vezes insultava os familiares.
Entretanto mandara avaliá-lo por vários pedopsiquiatras, que o submeteram a testes neuropsicológicos exaustivos. Os resultados eram sempre os mesmos: estava no escalão superior da inteligência, sem vestígios de dificuldades de aprendizagem ou doença mental. A mãe perguntava a si mesma se ela ou o pai teriam sido de alguma forma negligentes.
Nem um nem o outro, ao que parecia, se tinham saído tão bem nas avaliações psiquiátricas como o jovem. Um terapeuta notara que não eram inteiramente coerentes no que dizia respeito ao filho, especialmente em termos de disciplina: ela era mais permissiva que o marido. Outro terapeuta sugeriu que o pai não estava suficientemente presente e insinuou que não era um modelo forte para o filho.
Porém, havia um inconveniente com as explicações: este casal em teoria com dificuldades conseguira educar dois outros rapazes bons e adaptados. Como teriam conseguido, se eram tão maus pais?
A verdade é que tinham uma relação diferente com o filho difícil. A minha doente foi a primeira a admitir que se zangava muitas vezes com ele, algo que quase nunca acontecia com os irmãos.
Havia outra questão fundamental em aberto: se o rapaz não sofria de nenhuma problema psiquiátrico demonstrável, o que se passava?
heresia? A minha resposta pode parecer herética, vinda de um psiquiatra. Afinal tendemos a ver o mau comportamento como uma psicopatologia a exigir tratamento: não existem pessoas más, apenas doentes. Mas talvez este jovem não passasse de uma pessoa má.
Durante anos, os profissionais de saúde mental foram treinados para ver as crianças como meros produtos do seu ambiente, intrinsecamente boas até serem influenciadas no sentido contrário. Por trás de um mau comportamento crónico estava um pai ou uma mãe.
Contudo, embora não pretenda deixar os maus pais fora do assunto - infelizmente são demasiados, dos malignos aos apáticos -, permanece o facto de pais decentes poderem criar filhos malvados.
Quando digo "malvados" não quero dizer psicopatas. A literatura científica é abundante em escritos sobre psicopatas, incluindo as histórias de abuso na infância, a tendência precoce para violar as regras e a crueldade com colegas e animais. Alguns estudos sugerem que este comportamento anti-social pode ser modificado com ajuda dos pais.
No entanto, não se tem escrito muito acerca de pais bons com filhos doentios.
resistir aos filhos Outro doente falou-me do filho, então com 35 anos, que, apesar dos muitos privilégios, tinha mau génio e era mal-educado com os pais - recusava-se a devolver telefonemas e emails, mesmo quando a mãe esteve muito doente. "Temos dado voltas à cabeça para perceber por que razão o nosso filho nos trata assim", contou-me. "Não sabemos o que fizemos para merecer isto." Aparentemente, muito pouco.
Admiramos a criança resistente que sobrevive aos pais mais doentios e ao pior ambiente em casa e consegue ter êxito na vida. Contudo, o contrário - a noção de que algumas crianças podem ser as sementes más de pais decentes - é difícil de aceitar.
Vai contra a ordem normal, não apenas por parecer uma avaliação triste e pessimista, mas por violar a crença social de que as pessoas têm um potencial praticamente ilimitado para a mudança e para o auto-aperfeiçoamento.
Nem toda a gente se revela brilhante - tal como nem todos se revelam simpáticos e amorosos. E isso não será necessariamente devido ao fracasso dos pais ou ao mau ambiente doméstico. Acontece porque os traços de carácter que revelamos no dia-a-dia, como todo o comportamento humano, têm componentes genéticas, que não podem ser inteiramente modeladas pelo melhor dos ambientes, e menos ainda pelos melhores psiquiatras.
"Os pedopsiquiatras, hoje, acreditam que a doença está muitas vezes na criança e que as reacções da família podem agravar o cenário, mas não criá-lo por completo", diz o meu colega Theodore Shapiro, pedopsiquiatra do Weill Cornell Medical College. "A era do 'não há crianças más, apenas pais maus', passou."
Lembro-me de uma doente me confessar ter desistido de manter um relacionamento com a filha de 24 anos. Já não suportava as críticas contínuas. "Ainda a amo e tenho saudades dela", disse, com tristeza. "Mas na verdade não gosto dela." Para o melhor ou para o pior, os pais têm pouco poder para influenciar os seus filhos. Por isso não devem precipitar-se a assumir todas as culpas - ou créditos - por tudo aquilo em que os filhos se transformam.
fonte: Jornal i
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