quinta-feira, 21 de março de 2019

Deuses castigadores? Só as sociedades mais complexas os criaram


Cientistas passaram em revista a história de cerca de 500 sociedades e civilizações humanas, que nasceram e morreram ao longo dos últimos dez mil anos, e descobriram que só as mais complexas criaram deuses castigadores

A emergência das religiões e dos seus deuses nas sociedades tem desafiado historiadores e antropólogos. Como surgem, e por que motivo? Uma hipótese geralmente aceite tem sustentado que é a crença nos deuses, enquanto entidades organizadoras dos padrões morais - e castigadoras, quando eles não são cumpridos -, que permite que as sociedades se tornem mais complexas, mas um estudo agora publicado na revista Nature , acaba de deitar esta ideia por terra.

Um grupo internacional de investigadores, que analisou quase 500 sociedades humanas que surgiram e desapareceram ao longo dos últimos 10 mil anos, até à revolução industrial, vem desafiar aquela velha ideia. "Não é assim", diz o grupo coordenado por Harvey Whitehouse, do Centro de Estudos de Coesão Social da Universidade de Oxford, no Reino Unido. Ao contrário, garante o investigador, "a emergência da crença em grandes deuses castigadores só ocorre no seio de sociedades que já eram complexas".

No artigo que publicam esta quinta-feira, os autores sustentam ainda que parece ser a realização de rituais que cimenta as sociedades e lhes permite percorrer um caminho sólido em direção a uma maior complexificação. Um caminho que passa necessariamente pela cooperação entre muitos milhares de pessoas que não se conhecem entre si, mas que apesar disso, têm essa capacidade de cooperar. Pensava-se que isso tinha sobretudo a ver com crenças em entidades sobrenaturais punitivas para com os comportamentos desviantes das normas coletivas, mas afinal não é assim.

"Para nossa surpresa, os nossos dados contradizem completamente aquela hipótese", afirma o coordenador do estudo. "Em quase todas as regiões do mundo para as quais temos dados, os deuses moralizadores tendem a surgir depois, e não antes, de um aumento da complexidade social", diz Harvey Whitehouse, sublinhando que os resultados obtidos pelo seu grupo "sugerem que as identidades coletivas, [fortalecidas por rituais em comum], são mais importantes para facilitar a cooperação nas sociedades do que as crenças religiosas".

Uma base de dados preciosa

Para poder chegar aqui, os investigadores utilizaram a maior base de dados que hoje existe sobre sociedades humanas ao longo da história, a Seshat - Global History Databank, que reúne cerca de 300 mil dados sobre complexidade social, religião, cultura e outras particularidades de cerca de 500 sociedades do passado, desde há 10 mil anos e até à revolução industrial.

O projeto desta base de dados foi, aliás, lançado em 2011 por três dos autores do estudo agora publicado na Nature, entre os quais Harvey Whitehouse, justamente para tornar possível este tipo de investigações que abordam questões sociais mais complexas.

Para avaliar a emergência das entidades divinas castigadoras e guardiãs da moral, como é por exemplo o deus de Abraão, herdado depois pelos cristãos, os autores passaram em revista as cerca de 500 sociedades que constam na base de dados Seshat. E nesse conjunto, a primeira vez que ocorre um tal deus é na civilização do Antigo Egipto, na segunda dinastia dos faraós, há 4800 anos, adiantam os autores.

Idênticos fenómenos podem observar-se também um pouco mais tarde, há 4200 anos, em sociedades agrícolas na Eurásia, na Anatólia e na China, tendo os Romanos seguido igual caminho, na mesma altura em que o budismo surgiu com a sua ideia de karma (enquanto retorno, muitas vezes punitivo, das ações humanas), e pouco antes do surgimento e expansão do cristianismo e do islamismo, as que acabaram por se tornar predominantes até hoje.

Com este trabalho, os autores quiseram demonstrar também como a utilização de grandes bases de dados de história e antropologia, como a que eles próprios criaram, permite ir mais longe no estudo da complexidade social. Mas a grande novidade da investigação é mesmo o seu resultado: a descoberta de que os deuses, enquanto pilares da moral social, surgem depois de emergir a própria complexidade social.

Em todos os casos em que isso aconteceu ao longo da história, como verificaram os autores do estudo, as sociedades englobavam sempre mais de um milhão de pessoas. Mas, até as sociedades chegarem a esse ponto, verificou-se sempre a emergência de importantes rituais coletivos, alguns séculos antes, que permitiram forjar e cimentar essa complexidade social.


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