Escavações arqueológicas na praça D. Luís, em Lisboa, revelaram um fundeador romano, com mais de 2000 anos, um achado raro e extraordinário, que reflete, de forma muito rica, a história da cidade, salientou à Lusa o arqueólogo Alexandre Sarrazola.
O fundeador, como é designado no meio arqueológico, é um espaço à beira da costa, onde os navios ancoravam temporariamente para descargas, trânsito de passageiros e para concretizarem várias operações, como reparações. Este fundeador é datado pelo arqueólogo, entre o século I antes de Cristo e o século V.
"Esta zona, agora a 100 metros de distância da atual rua da Boavista, então zona de praia, constituía uma pequena baía onde os navios romanos fundeavam" e, no trânsito de cargas e passageiros, deixaram cair matérias ou até se libertaram delas.
Estes materiais que o lodo ajudou a preservar, permitem hoje determinar "uma dinâmica comercial, que dá já conta de Lisboa como uma placa giratória na economia do Império Romano, e já nos dá uma dimensão atlântica".
O arqueólogo lidera uma equipa que há dois anos escava esta área, na zona do Cais do Sodré, e que será um futuro parque de estacionamento.
Esta campanha de escavações trouxe à luz do dia outras realidades posteriores ao Império Romano, como navios do século XVII e uma grade de maré.
O fundeador é "um achado inusitado pela sua raridade", disse Sarrazola, que sublinhou a sua importância "do ponto de vista cientifico" pelos "contributos para a nossa história".
O arqueólogo referiu-se ao achado como "inestimável e de uma raridade notável".
Dados os materiais encontrados, de diferentes origens, e o contexto arqueológico encontrado, levam Sarrazola a argumentar que "a diversidade cultural, que nos enriquece e caracteriza, esse mosaico de influências, pode ser ancorado em tempos mais antigos, certamente da ocupação romana".
Entre os artefactos romanos há ânforas de várias produções, desde o interior da Hispânia ao Sul da Gália, Norte de África e até da Península Itálica, além das ânforas de fabrico na Lusitânia.
Estas ânforas eram os "contentores da época, nomeadamente, neste caso, para preparados de peixe, nomeadamente sardinha", de que se conhecem fábricas de salga na atual baixa e zona de Belém, explicou o arqueólogo Jorge Parreira, que integra a esquipa de escavações.
"As ânforas tinham, em média, a capacidade 45 litros, eram produzidas na Lusitânia, nomeadamente na margem sul do rio Tejo", mas foi também encontrada uma ânfora de finais do século I antes de Cristo, "que transportaria, provavelmente, vinho de Itália", referiu Jorge Parreira, arqueólogo da equipa.
Foram também encontrados artefactos de cerâmicas sigilatas, nomeadamente da baixela de consumo dos próprios navios, ou para consumo das elites locais que "não seriam tão abastadas quanto isso", disse Sarrazola
No espaço escavado, foi encontrada "uma sucessão de estruturas arquitetónicas e portuárias que refletem, de uma forma muito rica, a História de Lisboa".
O arqueólogo referenciou as diferentes estruturas encontradas, do século XIX para períodos mais recuados: "O famoso aterro da Boavista de 1855-1863, os alicerces da fundição do Arsenal Real, a estrutura portuária da Casa da Moeda, esta do século XVIII, a estrutura portuária do Forte de S. Paulo, do século XVII, e coevos desta época, uma outra pequena estrutura portuária e uma grade de maré ou rampa de estaleiro".
Esta grade de maré serviu de protetor destes vestígios romanos, quando do maremoto que se seguiu ao terramoto de 1755, disse o arqueólogo.
Dada a importância dos achados arqueológicos encontrados, Alexandre Sarrazola alertou para a necessidade de "uma articulação entre a política de património e a de ordenamento de território, nomeadamente quando são revistos os Planos Diretores Municipais ou quando se fazem planos de pormenor". Nesses casos, adiantou, "é fundamental ter-se em conta, particularmente na zona ribeirinha de Lisboa, a probabilidade da reincidência de achados desta natureza".
Para Sarrazola, "este tipo de intervenções" arqueológicas e os estudos que delas resultam só fazem sentido "se forem amplamente divulgados e se servirem para contar uma história para todos, de um passado que é de todos, e se sedimentarem aquilo que é uma memória coletiva".
"Só faz sentido fazer arqueologia quando essa arqueologia entronca na memória coletiva", rematou.
fonte: Diário de Noticias