A estrutura em madeira posta a descoberto é composta por barrotes que se pensa serem reaproveitados de navios Pedro Maia
Enorme estaleiro de reparação naval inclui bocados de embarcação do século XVI ou XVII. Subdirectora do Igespar visitou ontem escavação. "São vestígios fabulosamente importantes", observa especialista.
Partes de um navio que se supõe ser do século XVI ou XVII foram descobertas pelos arqueólogos que estão a trabalhar nas escavações para a construção de um parque de estacionamento subterrâneo na Praça D. Luís, em Lisboa.
"São vestígios fabulosamente importantes", observa Francisco Alves, especialista em arqueologia náutica e subaquática. A subdirectora do Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico (Igespar), Catarina de Sousa, também visitou ontem as escavações. Situada junto ao mercado da Ribeira, zona por excelência da construção e da reparação naval ao longo de séculos, a escavação está a revelar-se um manancial de achados arqueológicos. Aqui foram descobertas as fornalhas da Fundição do Arsenal Real, unidade industrial da segunda metade do séc. XIX; mas também vestígios do cais da Casa da Moeda, onde se cunhava o metal usado nas transacções; e ainda uma escadaria e um paredão do Forte de S. Paulo, baluarte da artilharia costeira construído no âmbito das lutas da Restauração, no séc. XVII.
Mas o que está a deslumbrar os arqueólogos é uma enorme estrutura de 300 metros quadrados, composta por barrotes de madeira sobrepostos em camadas, que se encontra totalmente preservada e que tudo indica ter servido de estaleiro de reparação naval ou de rampa de lançamento de embarcações para a água. Conservou-se enterrada no lodo durante séculos. A mais recente surpresa é que se percebeu que a camada mais funda da estrutura de madeira é composta por peças de navio reaproveitadas.
"Nunca encontrámos nada de semelhante em Portugal, e mesmo no resto do mundo não é um achado muito comum desta época", sublinha António Bettencourt, do Centro de História de Além-Mar da Universidade Nova de Lisboa. O arqueólogo foi chamado pela empresa Era, para acompanhar os trabalhos. Prepara-se já um projecto de investigação para estudar os achados do subsolo da Praça D. Luís, que, aliás, poderão não ficar por aqui. Haverá ainda outro tipo de vestígios debaixo dos pedaços de barco? Ninguém sabe.
Para já, os barrotes - de pinho, sobreiro e carvalho - vão ser analisados um a um, de forma minuciosa. Uns serão depois depositados outra vez em lodo, mas na margem Sul do Tejo, enquanto outros serão conservados nos serviços do Igespar. O Laboratório de Dendrocronologia do Instituto Superior de Agronomia foi chamado para ajudar na sua datação. A tarefa não será fácil, avisa uma investigadora do laboratório, Sofia Pereira Leal: ao contrário de outros países, ainda não foi criado em Portugal um padrão de crescimento das árvores com base nos anéis do tronco.
Que barco seria este e por que razão foi reciclado? Seria uma nau, uma caravela, um galeão? As questões sem resposta avolumam-se à medida que as escavações prosseguem. Se se confirmar tratar-se de uma embarcação do séc. XVII, estamos a falar de uma época em que o desenvolvimento acelerado da construção naval começava a ter nefastas consequências nas florestas, tanto em Portugal como noutras regiões europeias. "O abate das espécies mais procuradas fazia-se a um ritmo superior ao tempo necessário à recuperação da mancha florestal (...)", descreve-se na História de Portugal, de José Mattoso. A par da pirataria, a escassez de madeira ajuda a explicar a progressiva decadência das rotas da navegação comercial nas quais se baseava a economia portuguesa. "O tempo das caravelas aproximava-se do fim", explica a mesma obra.
As descobertas da Praça D. Luís serão alvo de uma palestra a 17 de Maio no Museu da Cidade, a que se seguirá outra no Padrão dos Descobrimentos a 2 de Junho.
Era uma vez um cachimbo otomano
Entre o espólio encontrado no lodo em que está imerso o estrado de madeira encontrado debaixo da Praça D. Luís surgiram vários pedaços de cachimbo. A maior parte deles são simples hastes, já sem o recipiente para o tabaco ou outras substâncias, o chamado fornilho.
Mas um dos pequenos achados mais acarinhados pelos arqueólogos é um minúsculo cachimbo trabalhado como os artefactos otomanos do mesmo género, e não à europeia: em vez de ser liso tem a superfície enfeitada com nervuras. "Pode ter sido produzido na Europa para satisfazer determinado tipo de procura", alvitra o arqueólogo António Bettencourt. A boquilha, essa perdeu-se - mas havia de ser bem comprida, como era hábito na altura.
fonte: Público
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