Há mais de trinta anos que Fernando Alves é o único habitante da ilha Barreta, uma das cinco que existem na ria Formosa, no Algarve.
Para os locais, a Barreta é conhecida como Deserta. Nela vive apenas um indivíduo: Fernando Alves, 68 anos, pescador, salvador de náufragos, vigilante de aves e, segundo o próprio, observador de ovnis. Instalou-se definitivamente na ilha em 1984, há 32 anos.
O reino de Fernando Alves reduz-se a três casinhas de madeira. Uma serve de abrigo – é simultaneamente quarto, sala e cozinha. Outra serve de casa de banho. A terceira casota funciona como espaço de arrumação para os materiais de pesca.
No meio da casa, Fernando Alves instalou um periscópio, para observar sem ser observado. «Já me deu muito jeito em dias de tempestade, para encontrar barcos que se desamarram e são arrastados para o sapal», conta. Já salvou mais de cem barcos do naufrágio e 11 pessoas de se afogarem.
De dois em dois dias, o homem lança-se ao mar num bote. Vai atrás do peixe e marisco fresco – que vende à doca de Faro e ao único restaurante da ilha, o Estaminé – e dos pescadores que lançam o isco aos jaquinzinhos e peixe miúdo - a quem lança ameaças.
Apaixonado por pássaros, Fernando Alves garante apoio científico aos biólogos e investigadores que estudam a fauna da região. Diz que um dos seus maiores tesouros é um guia de identificação de aves. Farta-se de ver arvelas brancas e amarelas, cotovias, pintassilgos, melros e gaivotas.
No verão, são frequentes os convívios à mesa, entre amigos. As visitas encarregam-se das bebidas. Já o almoço é por conta de Alves. São famosas as suas caldeiradas.
Além dos dotes de cozinheiro, Fernando Alves é engenhocas. Cria ferramentas, funde ferro em barris de cerveja e cria moldes para todo o tipo de necessidades – em casa tem uma máquina que ele próprio inventou para arrefecer o leite.
Fernando Alves gosta de ler sobre fenómenos extraterrestes e garante que já viu ovnis a sobrevoar a ilha. «São duas luzes muito focadas que se vão juntando e largam um foco vermelho. Depois desaparecem a grande velocidade, muito mais rápido do que um avião ou um satélite.»
A ligação ao mundo faz-se por um telefone satélite que Fernando Alves instalou na cozinha. Todos os dias recebe telefonemas - ou da capitania, ou do Parque Natural da Ria Formosa, ou da mulher. «Antes, ela ficava aqui comigo, mas depois teve complicações cardíacas e decidiu que era melhor ficar por terra», diz. Os dois veem-se todas as sextas-feiras.
Fernando Alves, 68 anos, vive há três décadas na Barreta. É o único habitante da ilha algarvia. Pescador, vigilante de aves, salvador de náufragos e, segundo o próprio, observador de ovnis. Nas dunas da ria Formosa, instalou um reino só para si. Mas, afinal, o que leva um homem a isolar-se no deserto?
O eremita não é bem um eremita. No verão não lhe faltam visitas, amigos com quem organiza almoçaradas, ele pesca os robalos e os outros trazem bebidas. Costumam aparecer biólogos, pescadores, faroleiros, o capitão do porto e um médico de Faro – coisa que lhe dá bastante jeito, porque assim não precisa de ir tantas vezes à cidade. Mas isso é nas tardes estivais. As noites são suas, das estrelas e de um cão chamado Bolinhas. Os invernos também são seus, semanas atrás de semanas de isolamento. Quando se cansou da confusão e do trânsito, Fernando Alves mudou-se para o deserto. E isso, bem vistas as coisas, aconteceu há trinta anos.
Mestre Alves tem 68, mas um sorriso adolescente. É o único habitante da ilha da Barreta, uma das cinco que existem na ria Formosa, no Algarve. Os locais chamam-lhe Deserta. Naquele território de sete quilómetros de comprimento por seiscentos metros de largura existe um restaurante que só serve almoços, um porto onde desembarcam alguns turistas nos dias quentes e as três casinhas de madeira que ele tornou no seu castelo. Uma serve de sala de arrumos para os materiais de pesca, outra é casa de banho. No meio, um habitáculo que é simultaneamente quarto, sala e cozinha. «É o pavilhão multiusos.» Cá fora, uma mesa larga, onde recebe visitantes e articula engenhos. Sim, que mestre Alves é inventor.
No meio da casa instalou um periscópio, para observar sem ser observado. «Arranjei uns tubos de plástico e uns espelhos e fiz isto. Já me deu muito jeito em dias de tempestade, para encontrar barcos que se desamarram e são arrastados para o sapal.» A ligação ao mundo faz-se por um telefone satélite que instalou junto ao frigorífico. Todos os dias toca. Ou é a capitania a perguntar-lhe o estado da barra, ou os biólogos do Parque Natural a perguntarem que aves tem observado, ou a mulher a dizer-lhe que tem saudades.
Se não fosse aquele telefone, aliás, Mestre Alves já teria morrido. Na noite do Ano Novo de 2008 levantou-se uma ventania tal na barra que uma placa de vidro soltou-se da casa e atingiu-lhe a cabeça. «Desmaiei. A sacana tinha-me cortado uma artéria e furado a pele até ao crânio. Quando acordei estava banhado em sangue mas tive o discernimento de ligar para a proteção civil.» Com um dedo tentou estancar a ferida que jorrava. Uma lancha rápida partiu em seu socorro, mas disso quase não se lembra. «Só sei que levei 17 pontos. E que estou cá para contar a história. Tive sorte.»
De dois em dois dias, o homem pega num bote de sete metros chamado Rufião e faz-se ao mar. Metade do tempo para apanhar robalos, metade para vigiar pescadores. Aos primeiros leva-os para uma poça junto à ilha para que se mantenham vivos durante uns dias, e às sextas-feiras vai vendê-los à doca de Faro. Aos segundos vocifera ameaças se os apanha a pescar polvos pequenos, chicharros miúdos ou jaquinzinhos. «Ameaço-os com a Guarda Costeira e eles põem-se ao fresco. Pois então, se dermos cabo do peixe pequeno a que é que vamos lançar isco para o ano?»
Mestre Alves é um ambientalista convicto. Ainda há dias viu um cardume de sardinhas ficar preso num regato na maré baixa e revolveu atirar-se para o charco com uma pá – para abrir um carreiro e deixar os peixes saírem. Há meia dúzia de anos, um grupo de biólogos ligou-lhe a queixar-se do desaparecimento de uma espécie de gaivotas e, nos dias seguintes, ele localizou quinhentos ninhos nas dunas. «Como não me podia aproximar muito para os bichos não rejeitarem os ovos, espetava uma cana no chão com um pedaço de tecido e depois os investigadores podiam ir aos sítios certos.
As suas manhãs começam de binóculo na mão e depois passa para um monóculo de longo alcance. É apaixonado por pássaros e um dos seus tesouros é um guia de identificação de aves. Como abriu um poço para sacar água potável para o seu palácio, resolveu também construir um bebedouro para os seus amigos voadores. «Papa-figos, melros e gaivotas vêm muitos, são o pão nosso de cada dia. Mas também me farto de ver arvelas brancas e amarelas, cotovias e pintassilgos, há uma toutinegra que costuma tomar o pequeno-almoço comigo, vem para a mesa e alimenta-se das minhas migalhas.
E há quatro meses veio aqui parar um grifo, esse é que nunca tinha visto.» O animal estava estoirado de cansaço, nem levantava voo para fugir do homem. Então o eremita chamou os biólogos do Parque Natural da Ria Formosa e eles levaram-no para o Centro de Recuperação de Aves. «Depois ligaram-me a convidar-me para assistir à libertação do Alves. Tinham-no batizado com o meu nome.»
A sua casa não é só residência, também serve de apoio aos investigadores que vêm estudar a preciosa avifauna da região. «Já fiz apoio logístico às universidades de Faro, Coimbra e Paris. Alguns pernoitam aqui comigo, ou montam tendas ali fora.» Se andam em trabalho de campo, ele ocupa-se de alimentar aquela gente toda. «Pego no barco, vou ao mar e trago o jantar.» As suas caldeiradas são famosas, e o seu olho para encontrar peixe fresco é conhecido. No verão de 2004, Roman Abramovich – o magnata russo dono do Chelsea – estacionou o iate no pontão e apareceu-lhe à porta de casa para comprar quatro douradas. Agora, vende uma boa parte do que apanha ao restaurante da ilha, o Estaminé.
Às sextas, quando vai à lota descarregar o pescado, aproveita para fazer compras e visitar a mulher. «Faço uma lista com o que quero e vou direito às prateleiras para comprar o essencial. Se começo a ver o que está exposto, é certo que vou acabar por comprar coisas que não me fazem falta nenhuma.» Os abastecimentos são normalmente batatas, pimentos, fruta, pão, queijo e café. O resto recolhe à água salgada. «Antes, a minha mulher ficava aqui comigo, mas depois teve complicações cardíacas e decidiu que era melhor ficar por terra.» Passa as tardes com ela, mas antes do sol cair embarca invariavelmente rumo à ilha. «Os carros fazem-me muita confusão. E aquele stress todo. Aqui é que eu estou bem.»
Mestre Alves instalou-se definitivamente na Deserta em 1984, há precisamente 32 anos. Já tinha uma barraquinha para guardar o material de pesca, mas três vezes foi ela assaltada até decidir mudar-se de vez para o barraco. «Nessa altura, por ordem do Parque Natural, mandaram abaixo 47 casas ilegais que aqui havia. A minha ficou porque precisava dela para trabalho.» Os anos foram passando e, no final dos anos 1990, pensou que ia ficar sem abrigo. «Foi o próprio capitão do Porto de Faro e o Parque Natural a explicarem à Câmara que eu devia ficar porque garantia apoio científico e observação marítima. E agora, pronto, sou a única pessoa autorizada a viver aqui.»
Do terraço onde instalou uma grande mesa, Alves consegue ver a barra de entrada no Atlântico. Ali, onde as águas do mar encontram as da ria, perderam a vida muitos homens. «Já salvei mais de cem embarcações. Algumas fui lá buscá-las com o meu barco, outras porque chamei as autoridades pelo telefone satélite.» Afogamentos impediu 11, de marujos em luta com a ondulação em dias que os botes viraram. «Numa outra vida fui nadador-salvador, sabe? Foi assim que conheci a minha mulher.»
Nasceu em Vila do Bispo mas mudou-se em pequeno para Faro. Trabalhou numa espingardaria, foi batedor de perdizes em reservas de caça, mas o que queria era ir para o mar. «A minha mãe espantava-se com o meu fascínio pela pesca, porque não havia ninguém na família a lançar rede.» Era apelo de sangue. Na praia da Salema punha-se a ajudar os homens no arrasto e calava os ralhos maternos com a cesta de pescado que trazia para casa. «Em 1968, formei-me nadador-salvador e fui para Albufeira. Um dia salvei uma rapariga que estava em apuros e trouxe-a para terra. Uma amiga dela disse que eu era um herói. Convidei-a para sair. Um ano depois, estávamos casados.»
Pôs-se a trabalhar numa fábrica de plástico e com o que poupava comprou o Rufião. Filhos não tem, mas ele e a mulher gostavam os dois de atravessar a ria ao cair da tarde, apanhar marisco e peixe para somar trocos à pobreza. Adquirir uma casota na Barreta era a coisa mais natural do mundo. «Ao início, vínhamos aos fins de semana e nas férias. Um dia despedi-me e fiquei de vez. Fartei-me de patrões, de estar sempre a correr, de conversas de chacha. Aqui, olha, o meu patrão é o vento. E a ondulação.»
Além dos dotes de cozinheiro, Mestre Alves é engenhocas. Cria ferramentas para os cientistas e para os pescadores, funde ferro em barris de cerveja, cria moldes para todo o tipo de necessidades. Em casa tem uma máquina que ele próprio inventou para arrefecer o leite. Na rua, tem uma picadora para os legumes feita com peças de ferro-velho. Agora anda a adaptar uma aparelhagem antiga para que ela seja capaz de ler pens em USB – e é ele que faz todas as ligações elétricas. «Às vezes, vêm cá os filhos dos meus amigos e pedem-me para pôr a música deles. Eu só tenho rádio, mas agora vou resolver esse problema.»
A água vem do poço. A eletricidade funciona graças a três geradores e painéis solares – e Alves até tem uma antena parabólica para receber televisão. «Não preciso de mais nada.» Nem da mulher? «Vejo-a todas as semanas. E até é melhor assim, porque andamos sempre com saudades e nunca ficamos cansados um do outro.»
A principal leitura que o homem consome são livros sobre fenómenos extraterrestres. «Já vi vários ovnis aqui na ilha», declara. Segundo os seus estudos, há três tipos de seres a visitarem a Terra: «Os que nos odeiam, os que nos protegem e os que têm curiosidade de nos conhecer. São esses que às vezes levam humanos para as naves. É para fazerem experiências científicas.» Ele nunca foi raptado, mas diz que todos os anos, na Lua nova de agosto, andam ali uns aparelhos aéreos a sobrevoar a Deserta. «São duas luzes muito focadas que se vão juntando e largam um foco vermelho. Já as vi eu e já as viram alguns pescadores da ria. Depois desaparecem a grande velocidade, muito mais rápido do que um avião ou um satélite.
Mestre Alves é o guardião da ilha, mas diz que ela não lhe pertence. «Se formos ver bem as coisas, eu é que lhe pertenço.» A vida que aquelas dunas lhe deram é a mais feliz que poderia ter tido. Sabe que o seu corpo não pode ser enterrado na ilha, mas já escreveu em testamento o seu último desejo. «Quero que plantem, ao pé da minha casa, cinco letras muito grandes, feitas de narcisos. » Um A, um L, um V, um E é um S. Alves. «Quero que cada uma tenha quatro metros de comprido, para até um avião conseguir vê-las. E não precisam de se preocupar com o gasto das sementes. Já as tenho aqui guardadas numa caixa, são das boas, chegam e sobram para cumprir este pedido. Quando estiver lá em cima no céu, quero olhar cá para baixo e saber que ilha é a minha.»