Representação artística do Tullimonstrum gregarium revelam a forma do estranho animal
Um dos milhares de fósseis descobertos em Mason Creek
Um dos milhares de fósseis descobertos em Mason Creek
Durante quase 60 anos não se sabia onde colocar na árvore evolutiva do reino animal um fóssil estranhíssimo de um ser marinho que viveu no Carbonífero. Seria um molusco? Seria um representante de um grupo animal hoje extinto? Não. Era um primo das lampreias.
Enigmáticos, problemáticos, os fósseis do monstro Tully são isso tudo, mas as suas formas permitiram dar largas à imaginação dos paleontólogos, e do público em geral, sobre a natureza deste animal marinho, que viveu há cerca de 300 milhões de anos. Os vestígios fossilizados de Tullimonstrum gregarium foram descobertos em 1955 pelo caçador de fósseis Francis Tully, em Mason Creek, uma importante jazida fóssil no Norte do estado do Illinois, nos Estados Unidos. Desde então, a origem evolutiva desta espécie tem sido um quebra-cabeças.
Quando saiu o primeiro estudo científico dedicado à espécie, em 1966, já o fóssil tinha ganho o nome de “monstro Tully”, inspirado no apelido de Francis Tully. Mas o artigo, publicado na revista Science, não arriscou a colocá-lo num dos grandes grupos do reino animal, como os moluscos, os artrópodes e os vertebrados, devido à sua estranheza. Nas décadas seguintes, cientistas especularam que a espécie teria sido um representante de um novo grupo animal, inexistente nos dias de hoje. Outros argumentaram que pertencia aos moluscos. E o ser foi ainda comparado com os poliquetas, um grupo de invertebrados.
Mas agora, um extenso trabalho de investigação que analisou 1200 fósseis diferentes de monstros Tully vem mostrar que estes animais eram, na verdade, primos das lampreias. Eram vertebrados tal como as lampreias, os outros peixes e toda a sua descendência evolutiva até aos humanos, de acordo com um estudo publicado nesta quinta-feira na revista Nature.
“É fascinante como um animal assim tão recente [em termos evolutivos], com tantos espécimes [fossilizados] e com uma morfologia tão distintiva se tenha mantido desconhecido durante tanto tempo”, admite ao PÚBLICO Victoria McCoy, do Departamento da Geologia e Geofísica da Universidade de Yale, em Connecticut (EUA), e uma das autoras do artigo da Nature. “O monstro Tully tem 300 milhões de anos, a maioria dos fósseis [descobertos] que ainda não foi identificada [é de espécies] com 500 milhões de anos.”
Há 300 milhões de anos, a geografia da Terra era completamente diferente. As massas continentais estavam a acabar de se juntar num supercontinente chamado Pangeia que definiria a biogeografia terrestre durante os 125 milhões de anos seguintes. Estávamos então no final do Carbonífero, o penúltimo período da era do Paleozóico (540-252 milhões de anos), que antecedeu a famosa era dos dinossauros, o Mesozóico.
Em terra, os animais vertebrados que punham ovos tinham acabado de surgir, mas faltaria muito para aparecerem os dinossauros, os mamíferos e as aves. Nas florestas havia musgos, cavalinhas, fetos arbóreos, além das coníferas, hoje representadas por espécies como os pinheiros.
Os fósseis encontrados em Mason Creek (datados, mais precisamente, entre há 309 e 307 milhões de anos) revelam que naquela altura existiam ali camarões, mexilhões, amêijoas, cefalópodes, peixes, tubarões, caranguejos e medusas. No meio desta fauna, a anatomia do monstro Tully — que as ilustrações científicas ajudam a recriar — destaca-se.
SEAN MCMAHON/UNIVERSIDADE DE YALE
Estes animais tinham cerca de 30 centímetros de comprimento e um corpo alongado que terminava em duas barbatanas. Lateralmente, no tronco do animal, pequenos furos denunciavam a existência de brânquias que lhes permitiam respirar na água. Mas as características mais bizarras eram os olhos e a boca.
Cada um dos dois olhos situava-se na extremidade de uma estrutura que se parece com uma vareta. As “varetas” nasciam na zona central do dorso do animal e cada uma projectava-se para um dos lados do corpo. Os cientistas pensam que estas “varetas” com os olhos na extremidade tinham mobilidade, permitindo ao animal ver para a frente e para trás, desviando-se de possíveis predadores e identificando presas.
Finalmente, a boca parecia-se com uma pinça de uma lagosta com dentes. Além disso, era a parte terminal de uma longa e fina probóscide que nascia do tronco e tinha um terço do comprimento do animal. Um espécime com 30 centímetros teria dez centímetros de probóscide e boca. A probóscide tinha três articulações, uma na base, outra a meio da probóscide e a terceira junto à boca.
Com este aspecto, o Tully estaria completamente enquadrado no meio dos seres que povoam o filme de animação Monstros e Companhia. O seu aspecto bizarro tornou-o famoso, e em 1989 passou a ser o fóssil de Illinois. Além disso, surgiram teorias mirabolantes. O jornalista inglês Frederick William Holiday, que se tornou um defensor do fenómeno fantasioso do monstro do Lago Ness, formulou uma teoria que liga o ser que supostamente habitava o lago da Escócia e o monstro Tully.
Para o inglês, a criatura teria evoluído ao longo das eras, tornando-se uma espécie gigante. “Ninguém saberá se a serpente do Lago Ness é uma forma do Tullimonstrum, mas falando da forma menos científica possível eu apostaria nisso”, disse, citado pela revista Wired, num artigo de 2011 sobre o Tully que desmonta este devaneio de Frederick William Holiday. Nunca se encontrou um fóssil semelhante ao Tullimonstrum gregariumnum estrato de outro período geológico da Terra ou noutro local além de Mason Creek. A ideia, escrevia a Wired, era “fantasiosa”.
Um mundo de “fósseis belos”
Independentemente do folclore, o mistério científico do Tully sobre o seu lugar na evolução dos animais permaneceu intacto. “Basicamente, ninguém sabia o que ele era”, sustenta Derek Briggs, outro autor do novo estudo da Universidade de Yale, citado num comunicado desta instituição. “Os fósseis não são fáceis de interpretar, e eles variam bastante. Decidimos atirar-lhes com todas as técnicas analíticas possíveis [para resolver o mistério].”
Os milhares de fósseis encontrados nas jazidas de Mason Creek formaram-se depois de os animais serem enterrados em lama, explica Victoria McCoy, contando-nos a história geológica do local. “Com o tempo, a lama tornou-se xisto argiloso [uma rocha sedimentar]. Na mesmo altura, minerais de siderite [carbonato de ferro] estavam a precipitar-se na lama, no xisto argiloso e à volta das carcaças dos animais”, descreve a paleontóloga. Sem oxigénio, a matéria orgânica pode ir sendo lentamente substituída por minerais, formando-se assim um fóssil. “Hoje, se formos ao local, vemos camadas de xisto argiloso com rochas redondas e rijas espetadas dentro do xisto. Se partirmos estes conglomerados, podemos encontrar com frequência fósseis belos lá dentro. Os fósseis do monstro Tully estão preservados na rocha, numa película achatada e colorida formada por diferentes tipos de minerais de argila.”
A equipa de investigadores tirou fotografias aos milhares de fósseis do estudo e obteve imagens de microscopia electrónica e de raios X, usando outras técnicas. Esta informação permitiu não só fazer medições da anatomia dos fósseis dos animais, mas também identificar estruturas diferentes. Durante o processo de fossilização, “os diferentes tecidos podem ser [substituídos e] preservados por diferentes minerais, por isso, ao olhar para os elementos [químicos] de cada aspecto morfológico, é possível perceber o que era o tecido original”, explica Victoria McCoy.
Foi assim que os investigadores fizeram a ligação entre o monstro Tully e as lampreias. Estes peixes, conhecidos pela sua forma delgada e a sua boca redonda com dentes em espiral, pertencem a uma linhagem evolutiva muito antiga de vertebrados, com mais de 400 milhões de anos. Por isso, têm características ancestrais diferentes dos vertebrados que evoluíram posteriormente.
Um exemplo é a corda dorsal, um tubo que se forma no desenvolvimento embrionário humano e no dos outros vertebrados, mas que acaba por fazer parte só dos discos intervertebrais na coluna vertebral. Ao contrário de nós, as lampreias mantêm a corda dorsal após o nascimento e não têm coluna vertebral; em vez disso, têm uma série de estruturas cartilagíneas ao longo do corpo que lhes dá sustentação.
As imagens obtidas dos fósseis do Tully permitiram identificar também uma corda dorsal e as mesmas estruturas de cartilagem repetidas ao longo dos segmentos do animal. Há mais. “Por exemplo, descobrimos que os dentes do monstro Tully são feitos provavelmente de queratina”, explica Victoria McCoy, tal como os dentes das lampreias.
Além disso, a investigação permitiu tirar a limpo qual a função da boca. No passado, cientistas defenderam que aquelas “pinças” com dentes serviam para agarrar as presas e as colocar noutro orifício que seria a boca. Agora, o estudo concluiu que o orifício das “pinças” era a verdadeira entrada para o sistema digestivo, ou seja, a boca.
Assim, a equipa colocou o Tully no mesmo grupo das lampreias, dentro da árvore evolutiva dos vertebrados. “Isto realmente altera o que sabemos sobre a família das lampreias. Todas as [espécies de] lampreias modernas são semelhantes entre si, e muito diferentes do monstro Tully. Por isso, o Tully diz-nos que as espécies de lampreias de hoje são apenas o que resta de um grupo que, em tempos, foi muito maior e mais diverso.”
Mas olhando hoje para estes animais, 300 milhões de anos após terem prosperado nas águas do Carbonífero, pode cair-se no erro de fazer a interpretação inversa. Por ser tão distante do que conhecemos, o monstro Tully parece uma entidade aberrante, uma tentativa falhada da evolução, um ser destinado a extinguir-se. Victoria McCoy desfaz este preconceito: “Eram diferentes dos animais que observamos hoje. Isso não quer dizer que fossem intrinsecamente estranhos, ou monstruosos, ou mal sucedidos. Apenas prosperavam numa altura diferente e de uma forma diferente do que estamos familiarizados.”
fonte: Público
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