Existem actualmente cerca de 10.000 lémures da espécie estudada (Erwan Quéméré)
Ninguém sabe o que viram as primeiras pessoas quando chegaram a Madagáscar, há mais de dois milénios. Mas no final do século XIX e início do século XX parte dos naturalistas europeus soube imediatamente o que perdeu: uma ilha-floresta equivalente a seis vezes a área de Portugal. A ideia, apesar de não ter sido consensual, passou a fazer parte do discurso dos ambientalistas. Madagáscar foi completamente verde, com muito mais espécies que foram sendo extintas com a chegada de povos que queimaram florestas para a agricultura e caçaram a fauna.
Hoje, apela-se a esta ideia de paraíso perdido quando se exigem políticas de conservação e de restauro dos ecossistemas que continuam a ser destruídos em muitas regiões da ilha. Mas uma equipa liderada pelo biólogo Lounès Chikhi, do Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC), em Oeiras, analisou grupos de uma espécie de lémure do Norte da ilha e concluiu que este primata sofreu uma grande diminuição no número de indivíduos milénios antes de o Homem ter lá chegado. A descoberta, publicada nesta semana na revista norte-americanaProceedings of the National Academy of Sciences, é mais um elemento na informação crescente que contradiz o conceito de ilha-floresta e que torna a história natural de Madagáscar e a sua conservação mais complexas.
O lémure estudado foi o Propithecus tattersalli, cujo nome comum traduzido do inglês é sifaca-de-coroa-dourada. É uma das cem espécies de lémures que evoluíram isolados na ilha, há cerca de 60 milhões de anos, e que não são naturais em mais nenhuma parte do mundo.
Este endemismo de Madagáscar é o que o torna especialmente rico a nível da biodiversidade. "Madagáscar é muito grande, com diversidade em termos de clima e altitudes. Isto cria muitos tipos de ambientes que podem facilitar o desenvolvimento de espécies diferentes", explica Lounès Chikhi, francês e argelino, e que está no IGC desde 2006.
O registo fóssil indica que nos primeiros séculos depois dos humanos chegarem à ilha, várias espécies de animais foram extintas, incluindo lémures que pesavam 200 quilos e tinham o tamanho de gorilas. Hoje, 91% dos lémures correm risco de extinção devido à caça e à desflorestação que afecta as florestas - situadas perto da costa. O planalto interior do país é uma longa savana.
Mas no caso do Propithecus tattersalli a história parece ser diferente. Existem cerca de 10.000 indivíduos desta espécie nas florestas em Daraina, que se mantêm com a mesma área nos últimos 50 anos. Lounès Chikhi e a equipa, da Universidade de Paul Sabatier, em Toulose, na França - onde o investigador também tem um grupo de investigação -, tiveram de enfrentar o terreno acidentado de Madagáscar. "Tem que se caminhar na floresta até encontrar grupos de lémures. Quando se chega a um grupo, eles defecam e é recolher as fezes", explica o cientista, que visitou a ilha cinco vezes desde 2008.
Depois, fez-se uma análise genética das fezes de 292 indivíduos e através de marcadores genéticos olhou-se para a história da espécie. Existem várias indicações a sugerir a existência de um decréscimo acentuado da população do sifaca-de-coroa-dourada, que noutros tempos terá tido cerca de 100.000 indivíduos. Partindo de um modelo de populações, a equipa testou qual era o cenário mais provável, ou seja, se este decréscimo teria sido recente ou antigo, devido à mão do Homem ou não. Com a diversidade genética que hoje existe, a equipa descobriu que o cenário mais provável é que estes lémures tenham sofrido uma importante redução alguns milénios antes de o Homem ter entrado em contacto com a espécie.
Este cenário é apoiado por outros dados. Existem análises feitas a sedimentos em regiões que são hoje florestadas e que indicam que no passado havia ali savana. Há antigos fósseis desta espécie em regiões que agora são desertas e pensa-se que no passado houve períodos de seca importantes que podem ter pressionado as espécies. "Se queremos perceber a história da zona temos de ver se as outras espécies vão contar a mesma coisa", diz o investigador.
Crise de 2009 afecta fauna
Depois da crise política de 2009 em Madagáscar, a conservação da fauna dificultou-se. O mais recente relatório sobre os lémures mostra que 94 das 103 espécies estão em risco de extinção, de acordo com a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN). Madagáscar é o país com a maior proporção de primatas ameaçados.
Lounès Chikhi, investigador do Instituto Gulbenkian de Ciência, esteve na reunião de avaliação da IUCN por ter estimado o número de algumas espécies. Segundo o investigador, muitos lémures são considerados sagrados pelas populações locais que não os caçam, e que conservam as florestas. Mas a crise empobreceu a população e fez aumentar o número de pessoas que migram que podem acabar por caçar espécies de lémures que são protegidos pelos locais.
fonte: Público
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