A sepultura de Pablo Neruda, na localidade chilena de Isla Negra, a ser tapada antes de se proceder à exumação dos seus restos mortais (em cima). Ao lado, o escritor com o Presidente Salvador Allende, deposto num golpe militar a 11 de Setembro de 1973 e que levou Pinochet ao poder ELISEO
O seu amigo Salvador Allende, Presidente do Chile, matou-se com uma espingarda, quando o golpe militar de Augusto Pinochet o depôs. Dias depois, também Pablo Neruda morria, a dúvida agora é como.
Quase 40 anos depois de Pablo Neruda ter morrido, a 23 de Setembro de 1973, o que podem as ciências forenses dizer sobre a sua morte? Até que ponto a exumação dos restos mortais, concluída ontem, permitirá esclarecer se o escritor chileno, galardoado com o Prémio Nobel da Literatura de 1971, morreu de cancro ou foi envenenado?
Pablo Neruda estava sepultado no jardim da sua casa-museu, com vista para o Pacífico, na localidade de Isla Negra, 120 quilómetros a norte de Santiago do Chile. Os restos mortais já seguiram até Santiago, para instalações do Serviço Médico-Legal do Chile.
A partir de agora seguir-se-á uma série de exames, para procurar esclarecer se morreu de cancro da próstata, como refere a versão oficial na certidão de óbito, aceite pela família. Ou se foi envenenado, através de uma injecção letal, como defende o motorista do escritor nos seus últimos tempos de vida, Manuel Araya, cujo relato originou esta investigação.
Neruda morreu apenas 12 dias após o golpe militar que depôs o Presidente Salvador Allende, de quem era amigo, e que levou ao poder Augusto Pinochet durante uma ditadura até 1990. Tinha 69 anos. Aliás, Allende tinha-se suicidado a 11 de Setembro de 1973, pondo uma Kalashnikov debaixo do queixo e premindo o gatilho - facto confirmado em 2011 por uma equipa forense internacional, que exumou os seus restos mortais e pôs assim fim a anos de especulações sobre se o Presidente chileno se tinha matado ou sido morto pelas forças de Pinochet -, quando as forças do golpe militar cercaram o palácio presidencial.
Quatro dias antes da morte de Neruda, a 19 de Setembro de 1973, o escritor deu entrada na clínica de Santa María, em Santiago, e foi de lá que o motorista diz que recebeu um telefonema dele. Para o dia seguinte, 24 de Setembro, Neruda tinha programada a viagem em que se exilaria no México. Por isso, o motorista e a terceira mulher de Neruda, Matilde Urritia, foram a Isla Negra buscar roupas, livros, dinheiro e o manuscrito da autobiografia Confesso que Vivi.
"Na manhã de 23 de Setembro, Matilde e eu fomos a Isla Negra buscar os seus pertences. Enquanto lá estávamos, recebemos um telefonema de Neruda na clínica. Ele disse: "Venham depressa. Quando estava a dormir, um médico veio e deu-me uma injecção no estômago"", recorda o motorista, citado pela BBC online, acrescentando que Neruda morreu por volta das 11 da noite desse dia. "Estou com muitas dores e a arder de febre", terá ainda dito Neruda segundo Manuel Araya, agora citado pelo jornal britânicoThe Independent.
Na sequência deste testemunho, o Partido Comunista do Chile apresentou uma denúncia de homicídio e o juiz Mario Carroza abriu, em 2011, uma investigação. Em Março deste ano, ordenou a exumação dos restos mortais do escritor e poeta, que, no início da década de 1970, foi também embaixador em Paris.
Além dos turistas, presença habitual na casa-museu de Neruda em Isla Negra, o local recebeu a visita do juiz Mario Carroza, do director do Serviço Médico-Legal do Chile, Patricio Bustos, das equipas forenses, incluindo peritos estrangeiros.
As atenções dos peritos irão agora concentrar-se principalmente em duas coisas - nos ossos, para tentar detectar sinais do cancro da próstata, e em substâncias tóxicas que teriam sido administradas.
"Se o cancro da próstata foi prolongado, podem ver-se sinais de metástases nos ossos. Pode ter provocado alterações nos ossos, que se vêem a olho nu", explica a antropóloga forense Eugénia Cunha, da Universidade de Coimbra e colaboradora do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses (INMLCF). "Tudo o que é rápido não dá tempo de chegar aos ossos. O sistema ósseo é dos últimos a reagir."
Já detectar sinais de envenenamento nos ossos, através de análises químicas, é bastante mais difícil. Depende se o envenenamento foi lento ou rápido e feito com o quê, diz ainda Eugénia Cunha. Num envenenamento lento, com a administração de uma substância tóxica ao longo do tempo, é susceptível ficarem vestígios nos ossos - mas "é raríssimo", é "muito, muito difícil" acontecer.
Pode dar-se o caso de ainda restarem tecidos mumificados ou cabelos, e aí poderão levar-se a cabo análises químicas à procura de vestígios de substâncias tóxicas. Só que, como refere o toxicólogo Mário João Dias, director do Departamento de Química e Toxicologia Forenses do INMLCF, antes de mais é preciso saber o que procurar nos materiais que restaram do corpo. "Qualquer análise nesta área, mesmo procurando ser o mais abrangente possível, tem determinadas etapas que partem do pressuposto do que queremos procurar", diz, explicando que é diferente se essa pesquisa é direccionada para metais, como chumbo ou mercúrio, ou drogas ou pesticidas. Também é diferente procurar substâncias capazes de provocar uma toxicidade aguda ou crónica.
Mas, para lá disso, será possível encontrar estas substâncias 40 anos depois? "Depende se são degradáveis ou não", diz ainda o toxicólogo. Se as substâncias do envenenamento forem comuns no próprio organismo ou na natureza, onde o corpo tem estado em contacto, também pode haver dificuldade em interpretar os resultados. Por isso, há que recolher amostras do solo à volta da sepultura, para ter valores de referência.
Os resultados só deverão ser conhecidos daqui a alguns meses.
fonte: Público
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