Fóssil da gruta da Aroeira DR
Reconstituição virtual 3D do fóssil DR
O fóssil do crânio da gruta da Aroeira DR
Os utensílios de pedra encontrados perto do crânio DR
A equipa a remover o crânio na gruta da Aroeira DR
A equipa na entrada da gruta da Aroreira DR
A gruta da Aroeira, no complexo arqueológico do Almonda, em Torres Novas, guardava um fóssil de um crânio com traços morfológicos únicos e uma datação precisa. Agora, falta encontrar o esqueleto.
14 de Julho de 2014. Era um dos últimos dias dos trabalhos de escavação na gruta da Aroeira, no complexo arqueológico do Almonda, em Torres Novas, e a reduzida equipa de três pessoas já só tinha um cantinho para escavar. Era, portanto, uma das últimas marteladas na gruta aquela que atingiu e esburacou o crânio escondido nas paredes duras como pedra. O arqueólogo João Zilhão chegou pouco tempo depois. Encontrou a equipa com um ar comprometido e alguém lhe disse: “João, temos aqui um problema.” O “problema” era a descoberta de um crânio humano com 400 mil anos, o mais antigo fóssil humano encontrado até hoje em Portugal.
“Fossem todos os problemas como este”, brinca agora o arqueólogo João Zilhão, em conversa com o PÚBLICO sobre a descoberta que considera estar “em termos de paleontologia humana, ao mesmo nível da
criança do Lapedo”. Os detalhes da descoberta, de todo o trabalho de remoção do crânio da gruta e da ainda mais difícil operação de restauro estão num artigo publicado esta segunda-feira na revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS). O fóssil chama-se Aroeira 3 (mais à frente, explicamos a razão do 3) e tem, pelo menos, duas características especiais: a precisão da datação feita (entre os 395 mil anos e 430 mil anos) e a combinação única de traços morfológicos que parece remeter para uma fase de transição para os neandertais ou mesmo para um dos primeiríssimos neandertais. Ou, na opinião de João Zilhão, é um crânio que remete única e exclusivamente para um antecessor do homem moderno, sem etiquetas de “espécie” alguma, e que prova a diversidade morfológica que existiu.PUB
Foto O fóssil do crânio da gruta da Aroeira DR
O achado é de uma equipa da Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa durante os trabalhos de escavação arqueológica na rede de cavidades subterrâneas associada à nascente do rio Almonda (Torres Novas) onde, desde 1987, se procuram vestígios deixados pelos primeiros povoadores do nosso território. O projecto, coordenado por João Zilhão, que participou em algumas das mais importantes descobertas arqueológicas em Portugal e que agora trabalha na Universidade de Barcelona, já permitiu resgatar pedaços da pré-história da fachada atlântica da Península Ibérica.
Foto Os utensílios de pedra encontrados perto do crânio DR
O Aroeira 3 foi ferido no momento da descoberta. Quando a equipa procurava, com um martelo demolidor, desbravar as paredes da gruta para chegar ao calcário de base e obter uma visão completa da sequência estratigráfica (das camadas de rocha), a ferramenta abriu, acidentalmente, um buraco no crânio escondido. Os restantes elementos da equipa foram imediatamente chamados à gruta da Aroeira. Rapidamente se confirmou que o fragmento encontrado era humano. A datação também foi fácil, uma vez que esse processo tinha sido feito antes com outras descobertas. É que na mesma gruta tinham já sido encontrados dois dentes isolados e datados da mesma época, de há 400 mil anos. Esses eram o Aroeira 1 e o Aroeira 2.
Na mesma gruta, a equipa encontrou outros sinais do mesmo tempo: ferramentas da cultura acheulense (utensílios bífaces de pedra) e ainda ossos queimados que sugerem um uso controlado do fogo.
E agora?
Na noite de 14 de Julho de 2014 houve tempo para festejos com vinho do Porto, confessa ao PÚBLICO Joan Daura, do Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa e primeiro autor do artigo. No dia seguinte, o trabalho recomeçou para resolver “o problema”. O resto do crânio continuava preso na rocha e a operação que permitia remover um bloco de rocha com o fóssil exigia ferramentas especiais: uma rebarbadora eléctrica, que só chegou a Torres Novas cinco dias depois. A seguir, foram 12 horas seguidas de trabalho para cortar em bloco a brecha que embalava o crânio.
O crânio foi depois enviado para Madrid para a delicada operação de restauro. “A preservação do crânio era parcial, mas aplicando técnicas de espelhamento às imagens obtidas por TAC (tomografia axial computorizada) foi possível realizar uma reconstrução virtual que corresponde a dois terços da morfologia original e de que apenas a zona occipital está ausente”, refere um comunicado sobre o artigo. A descrição dos traços morfológicos e estudos comparativos foram feitos por um grupo de especialistas, entre os quais Juan Luis Arsuaga, da Universidade Complutense de Madrid.
Foto A equipa a remover o crânio na gruta da Aroeira DR
Este fóssil é do período do Plistocénico Médio (entre 700 mil e 125 mil anos antes do presente) e é um exemplar da enorme diversidade que terá existido na altura em que surgiram, em África, os primeiros antepassados da nossa espécie, o homem moderno (Homo sapiens). Na Europa, o número de fósseis deste período de transição que antecede o homem do Neandertal (que existiu há cerca de 350 mil até cerca há 29 mil anos) é reduzido e a sua datação bastante imprecisa.
A mistura de traços encontrados no Aroeira 3 lança alguma confusão sobre o “rótulo” que é colocado nalguns dos fósseis que, por terem esta ou aquela característica, são classificados como pertencendo a esta ou àquela espécie. O crânio encontrado em Portugal tem, frisa João Zilhão, uma combinação única de características morfológicas: algumas evocam os fósseis espanhóis de
Sima de los Huesos (na serra de Atapuerca, em Espanha), outras, os Neandertais, outras encontram paralelo em restos de França
(Tautavel), Itália (Ceprano) ou Alemanha (Bizingsleben) e outras ainda que são exclusivas dele próprio.
Foto A equipa na entrada da gruta da Aroreira DR
Conclusão:
a evolução humana nas populações europeias do Plistocénico Médio foi um processo bastante mais complexo do que até aqui se pensava. “Temos de
abandonar esta história de classificar os fósseis desta época em espécies e variedades e tipos”, defende o arqueólogo, quando lhe perguntamos se este crânio poderia pertencer a um dos “primeiríssimos” Neandertais.
Mas há outra questão em aberto. Este crânio pertencia a um esqueleto. E onde está o esqueleto? “Não vamos fazer a procura da agulha no palheiro”, garante João Zilhão, que, no entanto, se compromete a realizar “mais uma ou duas campanhas na gruta da Aroeira, durante o próximo Verão. “Tendo aparecido o fóssil, temos a obrigação de tentar encontrar outras partes do esqueleto, se estiverem ali à volta.” Porém, avisa, é preciso apoio, que, até agora, tem sido “apenas da Câmara Municipal de Torres Novas”. “Estamos com esperança de que saia mais matéria, mais problemas destes. Bons problemas. Mas temos de ser apoiados. Milagres já fizemos os suficientes.”
O fóssil agora descoberto deverá ser apresentado ao público em Outubro, numa exposição do Museu Nacional de Arqueologia, em Lisboa, que vai incluir ainda a criança do Lapedo e outros importantes achados sobre a evolução humana em Portugal.
É importante, sublinha, continuar a escavar a Península Ibérica que, nos últimos 30 anos, tem revelado alguns dos mais importantes achados da arqueologia da evolução humana. Desde a arte rupestre do Vale do Côa – “sem dúvida, a mais importante descoberta arqueológica que se fez em Portugal”, considera João Zilhão – até à criança de Lapedo, passando pelos fósseis da Atapuerca. Não é por acaso, nota o arqueólogo. “Se olharmos para o mapa da Europa, a Península Ibérica representa um terço da área habitável do território europeu que durante o Plistocénico não ficou debaixo de água e que não esteve coberta de gelo.” Ou seja, prevê João Zilhão, este território pode guardar coisas de pôr “a arqueologia da evolução humana de pernas para o ar”.