domingo, 21 de outubro de 2012

Um dia com a comunidade sikh


Por Félix Ribeiro

Domingo, 12 de Agosto, Odivelas. Passava uma semana desde que Wade Michael Page assassinara a tiro seis membros da comunidade sikh no templo do estado norte-americano do Winsconsin, ferindo quatro outros. Michael Page acabaria por se suicidar, no local, depois de ter sido primeiro baleado no estômago pela polícia. 

O atirador, um ex-militar norte-americano, neo-nazi e apologista da supremacia racial branca refrescou na memória de Palwinder Singh as passadas discriminações que a comunidade sikh portuguesa sofreu no pós-11 de Setembro.

“Chamavam-nos Bin Laden na rua”, contou à SÁBADO o assistente do líder do Gurdwara de Odivelas - palavra em Punjabi que se refere ao templo sagrado dos sikhs. Os sikhs não têm nada que ver com os radicais islâmicos da Al-Qaeda, ou qualquer outra organização religiosa muçulmana, facto repetido várias vazes por Palwinder. 

“[É] por causa da aparência que há confusão”, diz-nos, num português hesitante, referindo-se ao facto de tanto os muçulmanos como os sikhs usarem turbante e barba grande.



A confusão de que fala Palwinder foi resolvida de uma forma muito ocidentalizada: “Fomos reclamar à SIC e à TVI que não tínhamos nada que ver com o Bin Laden”. Parece ter resultado, pois, conta-nos Palwinder, à parte de pequenos casos de rua, os sikhs nunca mais foram vítimas de discriminação em Portugal.

Gurdwara de Odivelas

O único templo sikh em Portugal encontra-se na rua José Duarte Lexim, lote sexto, um armazém em Odivelas convertido em espaço de culto para a comunidade portuguesa da quinta maior religião do mundo. 

Não existe um dia específico para as cerimónias religiosas, embora em Portugal se tenha estabelecido o domingo, por conveniência de descolocamentos e horários de trabalho. Nesse domingo, dia 12 de Agosto, rezava-se em memória das vítimas do Winsconsin, não apenas em Odivelas, mas em todo o mundo sikh.

Atrás do portão que desemboca na Rua José Lexim encontram-se alguns sikhs, não muitos - menos de 20. Aproveitam o sol do início da tarde e uma pausa do ambiente espiritual que se vive no interior do pavilhão. Nessas dezenas de metros quadrados de cimento, de empreitada ainda por acabar, não se pode ainda afirmar estar dentro do Gurdwara. 

Isso vem depois, quando já estão descalçados os sapatos e o cabelo coberto por um turbante, retirado de um grande recipiente de plástico, cheio até ao topo. O odor exótico que enche a grande sala de orações acomoda a imagem dos dezenas de sikhs, agora sim, muitas dezenas – cerca de 90 ao todo – que estão sentados de pernas cruzadas a comerem com as mãos e a beber chá.

O odor chega do Lagar – a cozinha -, que funciona desde sábado ao fim da tarde, confeccionando as refeições que são servidas aos fiéis ao longo de todo o dia de oração. Os restantes alimentam-se enquanto Ranjit Singh, o líder do templo, se encontra no andar de cima a meditar diante do livro sagrado Shiri Guru Garanth Sahib, do qual é fiel e único depositário. 

Só quando o líder do templo desce com o livro para a sala principal é que os pratos e as taças são postos de lado para darem lugar à oração colectiva. Isto repete-se ao longo do dia, até ao anoitecer.

O templo foi comprado em 2010, substituindo assim o primeiro Gurdwara português, que desde 1998 estava arrendado à comunidade na Serra da Luz, mais precisamente na Rua Padre Américo Monteiro de Aguiar, em Lisboa. Nessa época estavam em Portugal cerca de 6 mil sikhs, que constituem no país a maioria dos imigrantes indianos. 

Vindos do Punjabi, a mais significativa vaga de imigração deu-se por volta da década de 90, aproveitando as verbas que o estado português recebia então da Comunidade Europeia. 

Desde que se mudaram para Odivelas, a comunidade sikh portuguesa reduziu-se para metade, ou seja, para cerca de 3 mil pessoas. Diz Palwinder que começaram a existir problemas de “documentos e trabalho” no país. A maioria dos que partem fazem-no para outros países europeus, embora comece a existir um cada vez mais considerável número de sikhs a voltarem para Punjabi, conta à SÁBADO Palwinder.

Jagdish Singh é um dos poucos sikhs no Gurdwara que falam português. À SÁBADO, Jagdish conta que todos os domingos chegam a concentrar-se no templo cerca de 200 a 400 sikhs. Ao longo do dia, contas feitas, são por volta de mil os que passam habitualmente pelo Gudwara. Alguns vêm só para comer e beber chá, diz Jagdish.

A religião sikh tem como pedras basilares a liberdade e a igualdade. Jagdish Singh, tal como Palwinder Singh, são exemplos destes valores. 

Explicam que tanto o apelido Singh para o homem, como Kaur para a mulher, significam a mesma coisa: sikh. 

Não existem apelidos dentro do Gudwara, não há espaço, portanto, para a discriminação com base em castas, como é estruturada, aliás, a sociedade indiana. A raça, o género e a classe não têm lugar na religião sikh, conta-nos Jagdish, apenas a igualdade.

Apesar de a religião assim o exigir, são poucos os sikhs mais novos que deixam crescer a barba e o cabelo sem alguma vez os cortarem. 


Jagdish conta que assim está designado para que seja possível ver-se ao longe um sikh e dizer: “ali está um sikh”. Mas o próprio é exemplo de uma cara barbeada. Diz à SÁBADO que é cada vez mais permitido, embora os mais velhos não gostem que assim se faça.

As novas gerações também entram em correrias durante as pausas para as refeições. São os filhos dos primeiros imigrantes do Punjabi, aqueles que vieram na década de 90 e depois, já nascidos em território português. 

Até hoje a comunidade sikh foi sempre relativamente fechada, principalmente por causa das dificuldades com a língua. Mas Palwinder diz à SÁBADO que duas mulheres portuguesas em Odivelas se juntaram à religião. Duas exceções à regra de isolamento: “Não é comum”, conta.

Jagdish tenta contrariar essa tendência de isolacionismo sikh e não desiste depois da primeira resposta negativa da SABADO ao convite para sentar e comer em comunidade. 

Os pequenos correm à sua volta, está sempre com pelo menos um nos braços, sendo que a dada altura carregava duas crianças sikh enquanto falava à SÁBADO. Sempre com o leve sorriso e entusiasmo que encarna, como o faz o ambiente no Gurdwara português de Odivelas, a máxima sikh: “Toda a gente é igual”.

O Sikhismo

“Toda a gente é igual”, disse à ‘CNN’ Raghunandan Johar, presidente da missão sikh em Atlanta, no domingo do atentado de Winsconsin.


O sikhismo é a quinta maior religião do mundo, com cerca de 30 milhões de praticantes. É monoteísta e foi criada no Punjabi, no século XV, numa área que hoje se divide entre o território indiano e o paquistanês. Apesar de ter nascido no século XV, o seu desenvolvimento aconteceu apenas nos dois séculos que se seguiram.

A raíz etimológica do termo “Sikh” significa “aprendiz”, ou “discípulo”. A religião foi fundada pelo primeiro Guru Sikh – Guru Nanak Dev – e desenvolvida pelos nove gurus que o sucederam, responsáveis pelo ensinamento espiritual e filosófico dos sikhs, ensinando-os a viver vidas espiritualmente concretizadas com dignidade, liberdade e honra. 

Cada guru acrescentou algo e reforçou a mensagem deixada por Nanak Dev, até que a sucessão de gurus terminou com Granth Sahib, a escritura sagrada que está acima de qualquer responsável religioso e que perdurará até à eternidade, designada como permanente guru e alta autoridade espiritual pelo nono guru, Gobind Singh.


O livro sagrado tem mais de 1400 páginas, que incluem escritos da autoria dos primeiros nove gurus. É também o único livro sagrado religioso do seu género que contém escrituras de outras religiões. Um exemplo do cariz inclusivo da religião, como afirmou à ‘CNN’ Raghunandan Johar, frisando o facto de no livro não existir qualquer palavra de ódio.

Espera-se de um discípulo, ou seja, de um sikh, que este personifique as virtudes professadas no Guru Granth Sahib, o livro sagrado. A busca pela da salvação é feita através do contexto social que envolve cada sikh, que, para a atingir, deverá praticar a meditação em nome e pela mensagem de Deus.


Os EUA são outra história. Se Portugal é compreensivo em relação às diferenças sociais e religiosas - “Portugal é um público com muitos imigrantes; por isso conhecem bem a religião”, explica Palwinder -, a confusão, só a confusão, mistura sikhs com muçulmanos e coloca-os à mercê do anti-islamismo pós-atentados 11 de Setembro que em maior ou menor intensidade passou a existir no solo norte-americano. Falando de Michael Page, Palwinder reflete: “Talvez tenha passado todos os dias a ver as pessoas e a pensar que eram Bin Laden”.

Não se nota ódio nas palavras de Palwinder, quando se refere ao tiroteio no Gurdwara de Winsconsin. 

fonte: Sábado

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