terça-feira, 2 de outubro de 2012

Cerimónias tradicionais ajudam tribos de Papua Nova Guiné a acabar com guerras


Jovens Enga regressam de rituais tradicionais realizados com a intenção de educar e disciplinar os mais novos (Polly Wiessner)

Número de conflitos entre clãs diminuiu depois que os povos retomaram cortes de anciões, costume antigo e abandonado após a colonização.

Estudos recentes têm mostrado que a violência diminui conforme as instituições e os governos modernos se desenvolvem. 

De facto, o número de pessoas que morrem atualmente por conta de assassinatos é muito menor do que no passado. 

No entanto, um novo estudo publicado na revista Science mostra que, em alguns casos, são as instituições tradicionais e as formas antigas de governo que podem por um freio à violência trazida pelo mundo moderno. 

É o caso das tribos Enga, um grupo de mais de 400.000 pessoas que vivem no norte da Papua Nova Guiné, pequeno país da Oceania. 

Até os anos 1990, as desavenças entre as 110 tribos Enga eram resolvidos em conflitos à base de arco e flecha, com um número baixo de mortos e feridos.

No entanto, com a adoção de armas modernas como rifles semiautomáticos e espingardas, o número de mortes disparou – entre 1990 e 2010 foram 4816 mortes.

"Missões e escolas foram queimadas, vales inteiros foram desocupados, milhares se tornaram refugiados e os serviços do governo foram interrompidos" disse a antropóloga Polly Wiessner, da Universidade de Utah, que estuda as tribos locais desde 1985.

As guerras começaram a diminuir a partir de 2005, quando a população se deu conta do caos provocado pelas batalhas.

Os líderes do clãs e das igrejas locais se juntaram e conseguiram restabelecer a paz ao retomar uma instituição indígena tradicional: as cortes ao ar livre. A única diferença é que, dessa vez, elas eram sancionadas pelo poder do estado.

Os anciãos Enga adaptaram as cerimónias usadas pelas gerações passadas de modo a enfrentar as guerras modernas.

Por isso, os magistrados das cortes não se focam na punição dos crimes, mas na restituição dos malefícios provocados. Na maior parte das vezes, o pagamento de um crime se dá na forma da doação de porcos.

Uma regra antiga dizia que os combatentes deveriam ser enviados para casa e mascar cana-de-açúcar até chegar a um acordo. Nos tempos modernos, a tradição continua a mesma — a única diferença é que o hábito de mascar cana foi trocado pelo de beber Coca-Cola.

A pesquisa, que analisou dados de 501 guerras e 129 cortes, mostrou que usar os métodos antigos para resolver os conflitos locais acabou sendo mais efetivo para o governo de Papua Nova Guiné do que impor as leis ocidentais.

"O caso fornece uma oportunidade rara de examinar a construção e adaptação de instituições para promover a paz", diz o estudo.

História de violência — Os conflitos não são novidade entre as tribos locais. Há cerca de 350 anos, os comerciantes Enga introduziram a batata doce na região, o que permitiu que os porcos fossem alimentados de modo a criar uma produção excedente e, por consequência, uma rede de comércio.

As tribos passaram a se mover para áreas mais férteis, e essa migração acabou dando início a inúmeros conflitos. Entre os Enga, a guerra tribal é considerada um meio radical de vingar insultos ou lesões, mostrar força ou restabelecer o balanço de poder.


Clã realiza ritual para receber compensação pela morte de um membro

A partir de 1850, as tribos criaram instituições para acabar com a violência. As ofensas passaram a ser pagas com compensações, usando principalmente os porcos criados na região. Novas cerimonias religiosas e tribais surgiram, para disciplinar os mais jovens, honrar os ancestrais e unir os clãs.

Depois de 1950, quando colonizadores australianos começaram a controlar o local, a paz passou a ser mantida por soldados armados, enfraquecendo as tradições tribais.

Em 1975, o país conquistou sua independência, e a guerra ressurgiu no país. “As pessoas iniciavam conflitos porque alguém roubava um porco, estuprava uma mulher ou matava alguém, e o clã tinha que mostrar sua força para se defender”, diz Wiessner.

Embora o número de conflitos tenha crescido nesse período, a quantidade de mortos e feridos era pequena, pois as armas usadas pelos combatentes ainda eram arcos e flechas.

"Nessa época, era possível pegar seu almoço, subir um monte e assistir à guerra de longe. Era como ver um jogo de futebol", afirma a investigadora.

As armas de fogo eram mantidas longe dos conflitos, para evitar carnificinas. No entanto, a partir de 1990, os combatentes mais jovens passaram a adotar essa tecnologia, a contragosto dos mais velhos, e uma corrida armamentista teve início na região. Por duas décadas, os conflitos explodiram, e dizimaram 1% da população local.

A intensidade das batalhas só foi diminuir a partir de 2005, quando as tribos retomaram os conselhos de anciãos e os tribunais ao livre realizados por seus antepassados.

Justiça tribal — O estudo de Polly Wiessner vai de encontro com o que defende o psicólogo Steven Pinker, da Universidade de Harvard, que diz que as sociedades humanas surgiram em meio à violência, e se tornaram mais pacíficas com o passar do tempo.

"Nosso estudo mostra que sociedades de pequena escala tinham meios efetivos de resolver conflitos e garantir a paz, ao contrário do que muita gente, inclusive Pinker, diz acontecer nas sociedades pré-estatais", diz Wiessner.

"Não estou dizendo que Pinker está errado, mas os Enga mostram que pode haver uma grande variação na capacidade das diferentes sociedades de controlar a violência."


Magistrados de corte tribal Enga se reúnem depois de uma negociação de cessar fogo entre clãs locais

Ao comparar os períodos que vão de 1991 a 1995 e 2006 a 2010, a proporção de guerras que tiveram entre 51 e 300 mortos caiu de 9% para 1%.

No mesmo período, a proporção de guerras com um a cinco mortos subiu de 23% a 74%, mostrando que os tribunais eram capazes de acabar com os conflitos antes que eles se intensificassem.

Antes da introdução das armas modernas, o número médio de mortos por conflito era de 3,7. A partir de 1991, ele subiu para 19. Entre 2006 e 2010, o número de mortos por conflito caiu para cinco.

Segundo Wiessner, o sistema judicial ocidental funciona em grandes sociedades, onde a maior parte da população não se conhece.

A justiça é eficiente ao tirar ao tirar o transgressor de circulação, mas, como ele não aceita sua responsabilidade perante a comunidade e não compensa seu crime, a vítima acaba ficando sem nada.

"De modo diferente do sistema de justiça ocidental, as cortes satisfazem as necessidades da comunidade: elas conseguem restaurar as relações pela compensação material, ao mesmo tempo em que levam em consideração a política local e as relações futuras."


CONHEÇA A PESQUISA

Título original: Toward Peace: Foreign Armsand Indigenous Institutions in a Papua New Guinea Society

Onde foi divulgada: revista Science

Quem fez: Polly Wiessner e Nitze Pupu

Instituição: Universidade de Utah

Dados da amostra: Informações sobre 501 guerras realizadas entre os povos Enga e resultados de 129 cortes judiciais

Resultado: Depois que as tribos retomaram os métodos de julgamento realizados pelas gerações passadas, o número de mortos diminuiu. Ao comparar as guerras que aconteceram entre 1991 e 1995, e entre 2006 e 2010, os investigadores descobriram que o número de conflitos que tiveram de 51 a 300 mortes foi de 9% para 1%.

fonte: Veja

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